Uma forma curiosa das Ampulárias se alimentarem de materiais flutuando no filme d´água.
Artigo
publicado em 16/05/2015, última edição em 02/01/2021
Alimentação
Pedal de Nêuston pelas Ampulárias
Vejam a foto acima. Muitos de vocês que criam Ampulárias em aquários já devem
ter presenciado esta cena, a Ampulária se dirige até a superfície da água,
forma um funil com a região anterior do seu pé, e capta alimentos e outras
partículas que estejam flutuando no filme d´água. Um time de biólogos
argentinos resolveu estudar este comportamento mais a fundo, e conseguiu alguns
resultados bem interessantes.
Nêuston
Há alguma controvérsia na definição de “Nêuston”, alguns autores usam uma
definição mais ampla, para o grupo de organismos habitando a camada mais
superficial de corpos d’água. Porém, a maioria dos pesquisadores se refere a
“Nêuston” como o grupo de organismos habitando a interface água-ar em habitats aquáticos,
acima (Epinêuston) ou abaixo (Hiponêuston) do filme d’água. Alguns exemplos são
os artrópodes que caminham sobre a água usando sua tensão superficial (como os
Gerrídeos e Aranhas-pescadoras), e animais marinhos flutuadores, como as
Caravelas. Geralmente se inclui também plantas flutuantes, como as Lemna, Wolffia e Azolla, e
também estágios inativos de organismos (pólen, sementes e esporos). É um termo
que se confunde e se sobrepõe com “Plêuston”. Todos são nomes usados em
Ecologia e Limnologia, do mesmo grupo de “Plâncton”, “Nécton” e “Bentos”, estes
três talvez mais familiares para nós, aquaristas.
Alguns aquaristas já conhecem o termo Nêuston, porque é como
alguns se referem ao biofilme bacteriano que se forma na superfície de aquários
plantados, com um aspecto iridescente parecido com uma camada oleosa.
Ampulária Pomacea lineata se alimentando na superfície, fotografado em um pequeno córrego em Ubatuba, SP. Fotos de Walther Ishikawa.
Bioinvasão e Ampulárias
Ampulárias são espécies invasoras agressivas em muitos países, causando grandes
prejuízos em plantações e determinando importantes impactos ambientais,
dizimando macrófitas submersas e flutuantes em muitos locais ocupados. Após a
erradicação do seu principal alimento, espera-se que a população invasora entre
em colapso, ou que pelo menos haja uma redução drástica na sua população. Mas,
já há algum tempo têm-se notado que as Ampulárias persistem nestes locais
altamente impactados, até mesmo permanecendo em altas densidades populacionais,
mesmo depois das alterações catastróficas provocadas erradicando recursos. Como
isto é possível?
Coleta Pedal Superficial
Ampulárias tem uma grande plasticidade na sua alimentação, um
típico generalista, um dos motivos do seu grande sucesso como invasor. Neste
contexto, a Coleta Pedal Superficial (“pedal surface collecting”) de alimentos
é uma ferramenta bastante útil quando não há macrófitas disponíveis,
representando uma opção importante de fonte de alimentos. Porém, já se sabia
que Ampulárias consomem regularmente Nêuston, mesmo quando há outros alimentos
disponíveis.
Descrita brevemente desde artigos de 1952, é uma estratégia praticamente exclusiva das Ampulárias, o
animal se dirige à superfície, mantém a região posterior do pé fixa a algum substrato, e forma um funil com a parte anterior do pé (pró-pódio),
coletando o material presente na superfície da água, que depois
de compactado com muco, é ingerido. Inicialmente achava-se que a coleta se dava por movimentação ciliar, por este motivo, também era referida como "alimentação ciliar". Um trabalho de 2020 mostrou que na realidade a coleta é feita por movimentos ondulantes do pé do molusco. Permite a captura de uma grande variedade de alimentos, como restos
orgânicos (pétalas, folhas, exúvias e corpos de insetos) e nêuston (como
pequenas plantas flutuantes). A interface ar-água também contém uma quantidade
significativamente mais alta de particulado e matéria orgânica dissolvida, além
da Monocamada Protéica, que também são ingeridas pela Ampulária.
É um comportamento mais visto após o entardecer, para evitar detecção por predadores emersos. Porém, é raro á noite, talvez pela redução na temperatura da água. Ocorre em Ampulárias de diversos tamanhos, embora seja rara nos indivíduos muito pequenos.
Ampulária se alimentando na superfície do aquário. Vídeo gentilmente cedido por Juliana Jara.
Qual o papel da CPS?
Uma equipe argentina liderada pela Dra. Lucía Saveanu (Universidad
Nacional del Sur) e Dr. Pablo R. Martín (CONICET) decidiram estudar em
laboratório a CPS, se ela era empregada mesmo quando macrófitas são
disponíveis, e se uma alimentação exclusiva de Nêuston permitiria um
crescimento adequado das Ampulárias. Seus resultados foram publicados em 2015,
na conceituada revista Limnologica.
Foi visto que a CPS é uma alternativa importante como fonte
trófica quando macrófitas são ausentes ou não-palatáveis. Mas seu trabalho
confirmou que os animais consomem nêuston mesmo quando o alimento preferencial
(macrófitas) está disponível. Parece haver alguma preferência por macrófitas,
se todos os demais parâmetros forem iguais: valor nutricional, palatabilidade e
disponibilidade.
Ampulárias Pomacea scalaris e Pomacea diffusa alimentando-se na superfície, em um aquário. Foto de Denise Caillean.
Representa uma forma complementar e alternativa de
alimentação, com vantagens e desvantagens. Muitas vezes o nêuston representa um
alimento mais nutritivo (por exemplo, maior conteúdo protéico de carcaças de insetos),
com maior recompensa. Oferece também uma vantagem energética em curto prazo, já
que a oferta de alimentos é continuamente reposta, o animal não necessitando
sair do lugar para procurar mais alimento. Porém, esta vantagem é parcialmente
contrabalanceada porque há maior gasto energético à custa de intensa atividade
ciliar necessária para esta captura. Importante lembrar também que há maior
imprevisibilidade na oferta de nêuston, uma variação relativamente grande de abundância
e composição, já que ele é dependente de variadas fontes, como vegetação
ripária e macrófitas emersas.
Foi visto também que houve crescimento adequado dos animais
alimentados somente com nêuston, mas um crescimento menor do que aqueles
alimentados com macrofitas. Desta forma, Ampulárias podem sobreviver em locais
sem macrófitas, em corpos altamente impactados, alimentando-se somente de nêuston,
além de outras fontes como resíduos orgânicos e perifíton.
Ampulária Pomacea scalaris se alimentando na superfície, em um aquário. Foto e vídeo cortesia de Natalia Albano de Aratanha.
Parece se tratar de uma adaptação bastante especializada para
as mudanças ambientais previstas nestes contextos de invasão: o consumo em
massa de macrófitas altera o padrão do corpo de água, de águas límpidas
dominadas por macrófitas para águas turvas dominadas por fitoplâncton. Isto
aumenta a disponibilidade de nêuston, por aumento de plâncton e aumento de
pequenas plantas flutuantes.
A adaptação a ambientes imprevisíveis levou à
evolução da CPS, que é uma característica bem peculiar das Ampulárias. Um
quadro muito semelhante ocorreu em outro grupo de gastrópodes límnicos parentes
dos Ampularídeos, que são os Viviparídeos asiáticos. Só perdem em tamanho para
os Ampularídeos, mostrando o quão bem adaptados são a estes ambientes
dinâmicos. Os Viviparídeos (como o Bellamya)
consomem essencialmente macrófitas, mas também evoluíram uma estratégia
alimentar complementar, seu ctenidío, um órgão respiratório, desenvolveu um
mecanismo associado de filtração e captura de pequenas partículas orgânicas e
plâncton (séston), além da sua função respiratória. Há também um canal ciliado para
transportar este material filtrado à boca do animal.
Coleta Pedal Superficial de Ampulária, formando o funil com seu pé. Imagens cedidas por Antonio Tetares.
Bibliografia:
Saveanu
L, Martín PR. (2015) Neuston: A relevant trophic resource for apple
snails?. Limnologica - Ecology and
Management of Inland Waters 52, 75-82.
Marshall
HG, Burchardt L. (2005) Neuston: its definition with a historical review regarding
its concept and community structure. Arch.
Hydrobiol. 164 (4),429–448.
Saveanu L, Martín PR. (2013)
Pedal surface collecting as an alternative feeding mechanism of the invasive
apple snail Pomacea
canaliculata (Caenogastropoda:
Ampullariidae). Journal of
Molluscan Studies, 79(1): 11–18.
Cazzaniga NJ, Estebenet AL 1984. Revise e anota os
hábitos alimentares dos Ampullariidae (Gastropoda). História Natural 4 (22):
213-224.
Joo S, Jung S, Lee S, Cowie RH, Takagi D. 2020
Freshwater snail feeding: lubrication-based particle collection on the water
surface. J. R. Soc. Interface 17: 20200139.
Agradecimentos aos amigos aquaristas Juliana Jara, Denise Caillean, Natalia Albano Aratanha e Antonio Tetares (Espanha) por permitir o uso das suas fotos e vídeo.
As fotografias de Walther Ishikawa estão licenciadas sob uma Licença Creative Commons. As demais fotos
têm seu "copyright" pertencendo aos respectivos autores.