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Reprodução dos Camarões Nativos Brasileiros
 
Walther Ishikawa - Estratégias reprodutivas dos camarões

A Reprodução dos Camarões Nativos Brasileiros



Boa parte dos crustáceos libera uma grande quantidade de ovos diretamente na água, que eclodem e geram larvas planctônicas, os quais passam por vários estágios de metamorfose até se tornarem adultos. Neste processo, a taxa de sobrevivência é muito pequena, a grande maioria dos filhotes é devorada por outros animais, daí a necessidade de uma fecundidade grande. Somente como curiosidade, os camarões marinhos usados na alimentação humana são um bom exemplo deste padrão reprodutivo (ninguém se perguntou o porquê de não vermos fêmeas de camarão “ovadas” na feira?).

A maioria dos crustáceos decápodos desenvolveu uma estratégia bastante interessante, onde a fêmea transporta os ovos por um tempo variado, geralmente carregam a massa de ovos em uma bolsa externa, formada pelo aumento da pleura abdominal e pelas cerdas dos pleópodos da região ventral abdominal. Desta forma, a mãe protege a futura prole de eventuais predadores. Praticamente todos os camarões de água doce brasileiros mostram este comportamento (ovos fixos no ventre da mãe), a única exceção é o Aviú (gênero Acetes), pequenos camarões nectônicos que liberam diretamente os ovos na água. Todo o restante (as diversas espécies de Pitus, Camarões Fantasma, Filtradores e Potimirins) produz ovos que são incubados por um tempo variável na região ventral do abdômen. Há registros fósseis de ostracóides marinhos carregando ovos datados do período Siluriano (cerca de 425 milhões de anos).



Macrobrachium rosembergii, fêmea ovada, note o aspecto dos ovos, pequenos e numerosos, indicando reprodução primitiva. Fotografado em uma fazenda de criação em Piedade (SP). Foto de Walther Ishikawa.

   

Esta estratégia de cuidado parental é vista em diversos outros grupos animais, mais óbvio nos mamíferos e aves, onde este cuidado com a prole é obrigatório e prolongado. Inúmeros exemplos existem dentre invertebrados, desde sanguessugas a aranhas. Dentre os decápodes é um padrão comum, especialmente nas espécies continentais, pode haver desde o simples transporte e proteção dos ovos sobre o abdômen até um cuidado mais prolongado, da mãe carregando e protegendo os filhotes, frequente em caranguejos, lagostins e Aeglas em água doce. Nos camarões, o cuidado prolongado é observado somente em duas espécies de camarão europeu do gênero Dugastella, onde a mãe carrega os filhotes recém-nascidos sob o abdômen. Parece haver proteção materna dos filhotes também nos Macrobrachium do grupo hendersoni da Índia. 






Cuidado parental no caranguejo de água doce Trichodactylus borellianus. Fêmea carregando bebês caranguejos recém-nascidos. Este cuidado prolongado é quase inexistente nos camarões. Foto de Walther Ishikawa. 



Em paralelo ao cuidado parental, um outro fenômeno com a mesma finalidade é um prolongamento da fase de desenvolvimento dentro do ovo, retardando ao máximo sua eclosão, desta forma aumentando o tempo onde os filhotes serão protegidos pela mãe. Nestas espécies, as fases iniciais do desenvolvimento larvar se dão no interior do ovo, os filhotes nascendo do ovo em estágios mais adiantados, mais bem formados, onde a chance de sobrevivência será maior.

Este fenômeno é chamado de “reprodução especializada” (contrapondo-se a “primitiva”) ou “reprodução abreviada” (contra “prolongada”). Embora não haja consenso quanto à classificação destes padrões reprodutivos, alguns autores podem se referir a estes animais como “camarões superiores”, “avançados” ou de “desenvolvimento direto”.



Macrobrachium jelskii, foto de Cleidson Silva. Note o aspecto dos ovos, grandes e pouco numerosos.


A maioria dos pesquisadores acredita que este processo também é uma adaptação destes camarões ao continente. São espécies originalmente marinhas, que migraram em direção à água doce, daí um termo que alguns utilizam: “freshwaterization”. Quase todas as espécies continentais com reprodução primitiva precisam de água salobra ou salgada para o adequado desenvolvimento das larvas. É um fenômeno conhecido como Anfidromia, onde o animal adulto vive em água doce, e a larva se desenvolve em água salobra ou salgada. Para tal, há a migração da fêmea ovada em direção à foz do rio (poucas espécies, como o M. rosenbergii), ou então as larvas liberadas migram em direção à foz através da correnteza do rio (a maioria, inclui aparentemente todas as espécies brasileiras). 

Com as fases iniciais do desenvolvimento larvar ocorrendo dentro do ovo, a reprodução se torna mais independente das condições externas, por exemplo, não necessitando de água salobra para o desenvolvimento larvar. Por este motivo, camarões com reprodução especializada são mais comuns entre as espécies mais continentais. Há inúmeros exemplos deste mesmo processo evolutivo nos demais grupos de crustáceos, desde ostracóides a caranguejos (estes já alcançando um estágio mais extremo, que é a invasão de terra firme). Processo semelhante é visto em moluscos continentais e até anuros, com supressão de fases larvais no ovo.

Curiosamente, a reprodução abreviada é encontrada também em decápodes marinhos. É mais comum em habitats com maior estresse ambiental e/ou flutuação na oferta alimentar, como as regiões polares, abissais e costais, o que faz todo sentido. Também é vista em crustáceos simbiontes de invertebrados sésseis como esponjas e ascídias. No Brasil, alguns caranguejos de manguezais apresenta este padrão (no caso, parcial abreviação), como os Armases e Sesarma.




Megalopa de Sesarma rectum no vidro do aquário, quinze dias de vida. É um caranguejo de manguezal com reprodução parcialmente abreviada. Foto de Walther Ishikawa.

  

Um aspecto bem interessante da reprodução especializada é o fato destes animais gerarem menos ovos, de maiores dimensões. Faz todo o sentido em termos de gasto energético da mãe, já que o tempo de cuidado materno será maior, e a taxa de sobrevivência da prole também maior. Assim, não é custo-efetivo se produzir um número excessivo de filhotes.

Reparem que é um processo evolucionário contínuo, dinâmico e ainda em andamento. Assim, as diversas espécies de camarão mostram graus variados de “especialização”, com padrões reprodutivos intermediários, um verdadeiro espectro de graus de cinza, ao invés de uma dicotomia “primitiva X especializada”. Por exemplo, o Macrobrachium amazonicum (que é uma espécie com reprodução primitiva) mostra algumas populações continentais com ovos maiores e um número menor de fases larvares, tendendo a um padrão mais “especializado”. Outras espécies não-nativas mostram um pleomorfismo semelhante, como por exemplo, a espécie asiática Macrobrachium nipponense.



Euryrhynchus amazoniensis, fêmea ovada, fotos de Werner Klotz. Os Euryrhynchus são os únicos camarões brasileiros com reprodução completamente abreviada.


Quanto à nomenclatura, a classificação mais aceita na literatura científica divide estes padrões reprodutivos em três categorias: Tipo I - Prolongada ou Normal (8 ou mais fases larvares); Tipo II – Parcialmente Abreviada (geralmente 2 ou 3 fases); e Tipo III – Completamente Abreviada (somente uma fase). São bem raras as espécies de camarões dulcícolas com um padrão Tipo III, dentre os Macrobrachium, há somente um complexo de espécies da Índia. Um único exemplo importante dentre as espécies brasileiras é o Euryrhynchus, um gênero amazônico com cerca de nove espécies válidas. Por este motivo, a vasta literatura (tanto leiga quanto científica) prefere simplesmente classificar os camarões em dois grupos, de reprodução “primitiva” ou “especializada”, que é a classificação que usaremos aqui. Mas é importante sempre ter em mente estes dois fatos: existem padrões reprodutivos intermediários; e sempre que nos referirmos a “reprodução especializada”, na realidade estaremos tratando de camarões com ciclo Tipo II, “parcialmente abreviado”.

Além da reprodução em si, saber se o camarão tem reprodução primitiva ou especializada é uma informação que ajuda muito na correta identificação da sua espécie. Em algumas ocasiões, pode ser a única forma de distinção entre espécies parecidas (como o Macrobrachium jelskii e amazonicum TC).


 

Desenvolvimento Larvar e Metamorfose nos Camarões

 

O modelo de desenvolvimento mais aceito para os crustáceos inclui três ou quatro fases larvares separadas por mudanças morfológicas e de comportamento (metamorfose).

Ao longo do desenvolvimento destes animais, há um surgimento sequencial de apêndices, desde os mais anteriores (cefálicos) aos posteriores (abdominais), acompanhado da troca da natação pela marcha. De acordo com o desenvolvimento dos apêndices, a primeira fase, nauplius, é definida pela presença somente das primeiras antenas, segundas antenas e mandíbula, todos utilizados na natação. Na fase seguinte, protozoea (que muitos autores incluem na fase de zoea), os primeiros apêndices torácicos colaboram com os cefálicos na natação. A próxima fase, zoea, é definida pela atuação exclusiva dos apêndices torácicos na natação e a troca de função – natação/alimentação – dos cefálicos. A última fase antes do adulto não-reprodutivo, chamado de decapodito, é caracterizada pela natação abdominal e marcha torácica.




Acetes paraguayensis, o único camarão de água doce brasileiro da subordem Dendrobrachiata. Foto de Leandro Sousa (IctioXingu).


A fase de protozoea é presente somente na subordem Dendrobranchiata, que inclui os camarões marinhos usados na nossa alimentação, o único representante de água doce desta subordem é o Acetes. Desta forma, o desenvolvimento de praticamente todos os camarões dulcícolas é composto por três fases de significância filogenética: náuplio, zoea e pós-larva. Nos camarões, a fase de náuplio se dá dentro do ovo, os filhotes nascendo já como zoea. Por este motivo, quando se refere à “larva” de camarões, geralmente nos referimos aos zoea.

Os decapoditos têm nomes específicos a depender do grupo filogenético, são chamadas de pós-larvas nos camarões, megalopa nos caranguejos, puerulus nas lagostas, glaucothoe nos ermitões, etc. Desta forma, daqui em diante iremos nos referir aos decapoditos dos camarões como pós-larvas. 



Macrobrachium amazonicum, larva nascida em aquário (zoea I). Foto de Felipe Aoki.


As larvas e pós-larvas podem ser diferenciadas por diversos critérios anatômicos, mas isto pode ser difícil sem um bom microscópio. Uma forma mais prática de fazer esta diferenciação é pelo comportamento deles: Larvas são formas planctônicas natantes, ficando boa parte do tempo na coluna d´água, geralmente de forma passiva, se movimentando ao sabor da corrente. Larvas nadam para trás, com o ventre para cima ou de ponta-cabeça, com oscilações dos apêndices torácicos, ou movimentos bruscos da sua cauda fazendo pequenos saltos. Já as pós-larvas assumem um comportamento bentônico, permanecendo no substrato, semelhante aos adultos. Quando nadam, o fazem como os adultos, para frente e com o dorso para cima, usando os pleópodes. Esta regra não vale para as espécies de reprodução especializada, já que em muitas espécies as larvas recém-nascidas já têm um comportamento bentônico, apesar de anatomicamente ainda não serem pós-larvas. Outras duas exceções são a primeira fase de larva do M. acanthurus e do Potimirim, que não são planctônicas.

Durante a fase de larva (zoea), os camarões passam por diversos estágios de desenvolvimento, como já discutido, de acordo com o número de fases larvares, são classificados em animais com reprodução primitiva ou especializada. As fases larvares iniciais são separadas por uma única ecdise. Nas fases mais avançadas, pode haver mudas sem a metamorfose de uma fase à seguinte. Pode haver alguma variação no número de fases larvares, a depender, por exemplo, de uma alimentação deficiente.  



Larvas zoea 1 de Macrobrachium acanthurus, mostrando seus olhos sésseis. Nesta fase as larvas se fixam a algum substrato, não apresentando comportamento planctônico. Foto de Walther Ishikawa.


A metamorfose da primeira para a segunda fase de larva pode ser vista com uma boa lente de aumento: Larvas da primeira fase possuem olhos sésseis, enquanto os da segunda fase possuem olhos protrusos, pedunculados.

A metamorfose para a terceira fase também pode ser vista com uma lente, atentando-se à cauda do camarão: larvas da primeira e segunda fase possuem somente o telso, alargado como um leque, enquanto os da terceira fase já mostram um exópodo. Larvas da quarta fase possuem também um endópodo na cauda. Na quinta, o formato do telso se modifica, tornando-se quadrado. A partir da sexta fase, as diferenças são mais sutis (nos pleópodos, por exemplo), sendo bem mais difíceis de serem vistos em animais vivos, sem microscópio.




Larva de Macrobrachium acanthurus, zoea IV com 28 dias de vida. Note os olhos pedunculados, e o aspecto dos urópodes. Foto de Walther Ishikawa.


 

Camarões com reprodução primitiva

 

            Na reprodução primitiva, ovos pequenos e em grande número são gerados, e após um tempo relativamente pequeno, os ovos eclodem, liberando formas larvares planctônicas, que passam por várias etapas de metamorfose até se transformarem em pós-larvas.

            Como já mencionado, quase todos os camarões com reprodução primitiva são espécies costeiras, que na fase larvar são dependentes de água salobra ou salgada. Mas exceções existem, a mais importante é o Macrobrachium amazonicum, uma espécie cuja população continental tem todo seu ciclo de vida em água doce. Outros casos interessantes são o Palaemon pandaliformis, uma espécie costeira, e o Palaemon argentinus, costeira e continental, ambos têm reprodução primitiva, mas conseguem se reproduzir tanto em água doce quanto salobra. Um último exemplo é o Macrobrachium denticulatum, endêmico do Rio São Francisco (SE/AL), não é coletada desde 1995, possivelmente extinta.


Palaemon argentinus, larva nascida em aquário (zoea I). Foto de Romina Arakaki.


            A reprodução em cativeiro destas espécies é problemática, por dois motivos: Primeiro, o ajuste da salinidade nas primeiras fases larvares é difícil, os valores variam de espécie para espécie. E segundo, a alimentação das larvas. Na primeira fase larvar, os filhotes não se alimentam, consumindo nutrientes do seu saco vitelínico. Porém, na segunda fase larvar, à exceção dos Atyas, são estritamente carnívoros e predadores, se alimentando de zooplâncton.


Larva zoea IV de Macrobrachium olfersii com 40 dias de vida. Foto de Walther Ishikawa.


            A vasta maioria dos camarões das bacias costeiras tem este padrão reprodutivo: Quase todos os “pitus” (camarões grandes e agressivos), como o Macrobrachium carcinusacanthurusolfersii, o Camarão gigante da Malásia (espécie exótica, M. rosenbergii), os filtradores (Atya) e Potimirim. O Palaemon pandaliformis, o P. argentinus e parte dos Pseudopalaemon também pertencem a este grupo.


Larvas zoea I de Potimirim potimirim, foto de Fernando Barletta.


 

Veja a segunda parte do artigo aqui

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