Caranguejo de Água Doce – Microthelphusa spp.
Nome em português:
Caranguejo de água doce, Caranguejo de rio.
Nome em inglês: -
Nome científico: Microthelphusa spp. Pretzmann, 1968
Origem:
Norte da América do Sul
Tamanho: carapaça com largura de até 3,2 cm
Temperatura: ~18° C
pH:
neutro
Dureza: mole
Reprodução: especializada, todo ciclo de vida em água doce
Comportamento: agressivo
Dificuldade: fácil
Importante!!
Os caranguejos Microthelphusa são
encontrados em áreas bastante isoladas nos altiplanos do limite norte do país.
Como veremos adiante, trata-se de espécies com elevado grau de endemismo,
todas as espécies brasileiras são conhecidas somente da sua localidade-tipo. As
duas espécies não são mencionadas na
relação das espécies em risco de extinção publicado pelo Ministério do Meio
Ambiente e IBAMA (2014). Embora a avaliação formal da Sociedade Brasileira
de Carcinologia (2016) liste a única espécie avaliada (M. somanni) como “dados deficientes” (DD), muito provavelmente ambas
devem receber no futuro uma classificação com um grau de ameaça mais elevado.
Desta forma, embora permitidas por lei, sugerimos fortemente que não seja
realizada a sua coleta ou manutenção em cativeiro.
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Apresentação
Existem duas famílias de caranguejos
de água doce no Brasil: Trichodactylidae e Pseudothelphusidae. O número
total de pseudotelfusídeos existentes é maior (em torno de 300, contra cerca de
50 tricodactilídeos), mas no Brasil são bem mais raros, representados por
atualmente 27 espécies. São caranguejos tipicamente encontrados em regiões
montanhosas, sendo descritos do norte do México ao Brasil, bastante numerosos
ao longo da cadeia montanhosa dos Andes. No Brasil, a família é representada
exclusivamente pela tribo Kingsleyini.
Pseudotelfusídeos têm um alto grau de
endemismo, ocorrendo em áreas geográficas pequenas com pouca sobreposição entre
as espécies. Os Microthelphusa são
pequenos caranguejos pertencentes a esta família, é o maior gênero dentro da
tribo Kingsleyini atualmente com 20 espécies conhecidas, todas sul-americanas (Venezuela,
Trinidad e Tobago, Guianas, Suriname e Brasil). É provável que o gênero seja
revisto em um futuro próximo, dado que trabalhos recentes têm demonstrado parafiletismo.
Somente duas ocorrem em território brasileiro, mas na listagem seguinte
incluímos mais duas espécies encontradas na Venezuela, bem próximo à divisa com
o Brasil, já que provavelmente sua área de ocorrência se estende ao nosso país.
São eles:
Microthelphusa lipkei Magalhães, 2010 – Brasil (AM)
Microthelphusa somanni (Bott, 1967) – Brasil (AM)
Microthelphusa aracamuniensis
Suárez, 2015 – Venezuela (estado Amazonas,
junto à fronteira com o estado brasileiro AM)
Microthelphusa roraimaensis
Suárez, 2015 – Venezuela (estado Bolívar,
junto à fronteira com o estado brasileiro RR)
Etimologia: Microthelphusa
faz menção às pequenas dimensões destes caranguejos, e ao antigo gênero de
caranguejo de água doce do velho mundo Thelphusa,
atualmente dividido em diversos outros gêneros. Em relação às duas espécies brasileiras,
lipkei é uma homenagem ao eminente
carcinólogo moderno holandês Prof. Lipke Bijdeley Holthuis, e somanni é provavelmente uma homenagem, ou
uma referência ao gênero asiático Sommaniathelphusa,
mas não há menção no artigo original de Bott.
Origem
As
espécies de Microthelphusa têm tipicamente
um habitat em altiplanos (entre 500 e 2000m de altitude), encontrado no nordeste
dos Andes, ao longo da cadeia montanhosa costal venezuelana, e frequente nos
tepuis do Escudo das Guianas, localizados entre o Rio Orinoco ao Norte e Rio
Negro ao Sul. Tepuis são montanhas sedimentares com o topo plano, lembrando gigantescas
mesas, bastante características desta região. Estas formações geológicas criam
ilhas de florestas isoladas, o que tende a aumentar ainda mais o endemismo
destas espécies. Estes pequenos caranguejos habitam riachos límpidos e de águas
frias nestes altiplanos. Mesmo a espécie insular encontrada em Trinidade habita
altitudes elevadas (600-800m). M. lipkei foi coletada no Igarapé do Anta, em elevação
superior a 1000m na Serra do Aracá, Barcelos, AM. M. somanni é encontrado no Rio Marauiá, alto Rio Negro, Parque
Nacional do Pico da Neblina, norte de AM próximo à fronteira venezuelana (há
algumas menções de encontro no território venezuelano também). M. aracamuniensis foi coletado no tepui
Cerro Aracamuni, estado venezuelano Amazonas, junto à fronteira com o estado
brasileiro AM, a 1000~1500m de altitude. M.
roraimaensis foi coletado no massivo Roraima-Kukenan, estado Bolívar, junto
à fronteira com a Guiana e o estado brasileiro RR, numa altitude de 950m. Estas
quatro espécies só são conhecidas nestas localidades-tipo, novamente
demonstrando o elevadíssimo grau de endemismo dos Microthelphusa. Há alguns curiosos relatos de prováveis caranguejos Microthelphusa habitando fitotelmata de grandes bromélias, em Trinidade e na Guiana (fotos).
Distribuição geográfica dos caranguejos do
gênero Microthelphusa que ocorrem no Brasil. Imagem original Google
Maps; dados extraídos de Pedraza-Mendoza 2015, e
demais referências abaixo.
Aparência
Semelhante aos demais caranguejos
continentais, com cefalotórax de altura média, elipsóide, com a margem anterior
mais larga. Olhos pequenos, antenas curtas. Grandes quelípodos, discretamente
assimétricos. Pernas dispostas lateralmente.
Pseudotelfusídeos podem ser
diferenciados dos tricodactilídeos por dois detalhes: dáctilos com
espinhos (ao invés de pelos), e segundo maxilópode. Dentro da família, a
identificação dos diferentes gêneros e espécies é bastante difícil, baseada
essencialmente na morfologia do gonópodo (apêndice sexual masculino).
Exemplares fêmeas e juvenis não podem ser identificados com segurança além do
gênero. Isto explica a grande confusão existente entre as diversas espécies,
espécies descritas sendo consideradas sinonímias, e espécies previamente
consideradas não-válidas sendo re-validadas. Obviamente isto também torna a identificação
destas espécies extremamente difícil para o leigo.
Não há nenhuma característica
morfológica marcante nos Microthelphusa que permita diferenciá-los dos demais Pseudothelphusidae,
exceto o pequeno tamanho. A larguras máxima da carapaça nas quatro espécies são:
- Microthelphusa lipkei – 2,6 cm
- Microthelphusa somanni – 3,2 cm
- Microthelphusa aracamuniensis – 3,7 cm
- Microthelphusa roraimaensis – 2,1 cm
Os artigos científicos não descrevem detalhadamente
a coloração destes caranguejos. Baseado nas fotos e em algumas descrições,
parecem ser todos pequenos caranguejos de cor avermelhada ou castanho-alaranjada.
Região dorsal da carapaça mais escura na porção central, com uma margem mais
clara.
Microthelphusa roraimaensis, encontrado na divisa entre o Brasil e Venezuela. Imagem extraída de Suárez H. Anartia 2013 (Licença Creative Commons).
Parâmetros de Água
São espécies adaptadas a ambientes límpidos
de elevada oxigenação. Apesar da localidade tropical, trata-se de riachos montanhosos
com temperatura mais baixa. Só há informações objetivas dos parâmetros para Microthelphusa viloriai (Trujillo,
Venezuela), com uma temperatura de 18º C e pH 7,1.
Dimorfismo Sexual
Como todo caranguejo, pode ser feita
facilmente através da análise do abdômen, o macho possui abdômen estreito, e a
fêmea, abdômen largo, onde fixa seus ovos.
Microthelphusa aracamuniensis, encontrado na divisa entre o Brasil e Venezuela. Imagem extraída de Suárez H. Anartia 2013 (Licença Creative Commons).
Reprodução
Todo seu ciclo de vida se dá em água
doce. As informações sobre a reprodução dos pseudotelfusídeos é bastante
escassa, existe uma única descrição em espécies do gênero Kingsleya.
O que se sabe é que o padrão é
semelhante aos tricodactilídeos, com poucos ovos de grandes dimensões,
apresentam desenvolvimento pós-embrionário direto, onde as fases larvais
completam-se ainda dentro do ovo. Na eclosão são liberados indivíduos já com
características semelhantes ao adulto. Muito provavelmente (assim como ocorre com
os Kingsleya) há cuidado parental, os jovens são protegidos e
carregados pelas fêmeas sob o abdome após o nascimento.
Comportamento
Os pseudotelfusídeos são caranguejos semi-terrestres, há relatos de grandes aglomerações noturnas de Microthelphusa junto à margem destes riachos. Não necessitam vir à superfície para respirar, mas preferem habitats onde possam encontrar terra firme para procurar alimentos e construir suas tocas. Relatos de criação em cativeiro destes caranguejos são quase inexistentes, toleram a manutenção submersa em aquários, mas possivelmente seriam mais bem acomodados em aquaterrários. Fugas são bastante frequentes, o tanque deverá ser sempre mantido bem tampado. Agressivos e territoriais, frequentemente mostram quelas amputadas na natureza. Porém, há relatos de criação bem sucedida com peixes pequenos, inclusive de fundo. Pequenos invertebrados bentônicos fazem parte da sua dieta, como caramujos, e serão rapidamente predados. Plantas tenras também são devoradas avidamente. Por serem escavadores, não são indicados para tanques com substrato fértil, ou com layout ornamental. Hábitos noturnos, costumam ficar entocados até anoitecer. Como os demais crustáceos, tornam-se vulneráveis após a ecdise, e podem ser predados por outros animais. Por este motivo, nesta época permanecem entocados, até a solidificação completa da carapaça.
Microthelphusa furcifer, fotografado no interior de uma bromélia gigante, no Parque Nacional Kaieteur, Guiana. Foto cortesia de Tom Murray.
Alimentação
Poucos dados existem quanto aos
hábitos alimentares dos pseudotelfusídeos. Sabe-se que são onívoros, pouco
seletivos, se alimentando de plantas mortas, carcaças de animais e caçando
pequenos invertebrados.
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Agradecimentos ao fotógrafo Tom Murray (iNaturalist) |