Prisodon
obliquus, fotografados à margem do Rio Itaya, em Loreto, Peru. Foto de Mark Sabaj Perez.
Náiades
Os grandes moluscos
bivalves da ordem Unionoida são chamados popularmente de Náiades, que são ninfas
aquáticas da mitologia grega. Chamados de Itãs (uma palavra Tupi) especialmente na região norte, são animais estritamente dulciaquícolas, e
representam a maior radiação dos bivalves na água doce, com mais de 800 espécies
dispersas pelo globo, em todos os continentes (inclusive um registro fóssil na Antártida). Na América do Sul são representadas pelas famílias
Hyriidae (40 espécies, com distribuição tendendo ao Sul), Mycetopodidae (32 espécies,
distribuídos mais ao Norte), e uma única espécie colombiana de Etheriidae.
Vivem em lagos, açudes, lagoas, e também em águas
correntes como córregos, riachos e rios. Por vezes suportam condições de
estagnação, sendo conhecidos casos de estivação no Nordeste brasileiro. São animais filtradores, bombeando água no seu
interior para obter oxigênio e alimentos. Têm crescimento lento e vida longa, são os mais longevos dos
invertebrados de água doce. Algumas espécies chilenas chegam a viver mais de 90
anos.
São os moluscos bivalves nativos mais comumente
encontrados na natureza, muitas vezes aquaristas desavisados coletam estes
animais em riachos e pesqueiros, e os trazem para seus aquários. Por diversos motivos isto
não é aconselhável, como veremos adiante.
Grande variedade de Náiades coletadas no Rio Itaya, em Loreto, Peru. Foto de Mark Sabaj Perez.
Descrição
e anatomia
Podem atingir grandes dimensões, os maiores bivalves de
água doce existentes pertencem a este grupo, com animais de mais de 30 cm. Possui
aspecto relativamente plano, largo e achatado, com formato variável, o mais
comum elipsóide. A porção mineral da
sua concha é composta primariamente de aragonita, mas com um aspecto lamelado,
entremeado de calcita e material orgânico, o que confere um belo aspecto
nacarado e iridescente. Porém, justamente por este motivo, suas conchas
tornam-se quebradiças depois de secas. Esta porção mineral é revestida de
periostracum, uma membrana proteinácea escura que previne a dissolução da aragonita.
Apresentam um
grande pé muscular usado para se enterrar. De cada lado do pé, existe um par de
amplas brânquias usadas para outras funções além de troca gasosa. Bivalves são
animais filtradores, cílios nas brânquias transportam partículas capturadas
juntamente com o muco para a boca. E as brânquias são usadas como cavidades
marsupiais para a reprodução. Um manto simétrico envolve todo o corpo, e produz
a concha bivalve. Bivalves não apresentam uma cabeça, e quase todos os órgãos
de sentido atrofiaram da região anterior. A margem do manto (em especial sua
borda posterior) é agora seu principal canal de contato com o mundo exterior,
possuindo células fotossensíveis e órgãos táteis.
O pé se localiza
na borda anterior. Na borda posterior da concha estão as aberturas inalante e
exalante, por onde circula água. Diferente das espécies marinhas, Náiades não
têm sifão, o que os impede de se enterrarem profundamente no substrato. Desta
forma, permanecem semi-enterrados (hábito semi-infaunal), mantendo sua borda posterior com as
aberturas expostas. A distinção das duas famílias não é difícil, mas não é possível sem a análise da porção interna da concha ou dissecção. Os Mycetopodidae não apresentam dentes laterais na charneira da concha, possuem larvas do tipo lasídio, e brânquias com septos verdadeiros.
Em Hyriidae podem ser vistos os dentes laterais, geralmente alongados na charneira, larva do tipo gloquídio, e brânquias com septos verdadeiros.
Náiade, Diplodon
delodontus, animal coletado em um riacho de Nazaré Paulista (SP). Note as
áreas de erosão do periostraco, expondo a camada prismática nacarada. Na segunda imagem, veja a extensa erosão junto ao umbo,
expondo inclusive as lamelas da camada prismática. Fotos de Walther Ishikawa.
Diplodon
delodontus, foto
de outro animal com periostraco mais íntegro. Foto de Walther Ishikawa.
Outro Diplodon sp., fotografado na Represa de Vinhedo, em SP. Foto de Walther Ishikawa.
Conchas de Diplodon aethiops (Lea 1860), coletados no Rio Itajaí-Açú, Blumenau, SC. Fotos de A. Ignacio Agudo-Padrón.
Náiade Gigante Anodontites trapesialis, animal com 14 cm, coletado em um pesqueiro em Valinhos (SP). Foto de Walther Ishikawa.
Um grupo bastante interessante são as Náiades da tribo Prisodontini (Hyriidae). Endêmicas das bacias Amazônica, das Guianas e do Orinoco, são Sinfínotos, ou seja, apresentam processo alares nas extremidades da linha dorsal das conchas, além do umbo, formando grandes e finas "asas", de função desconhecida. Estas projeções são vistas também em Náiades de outras famílias, em outros continentes, geralmente associadas a ambientes de pouca correnteza e fino sedimento. Chamadas de "claustrum", uma das hipóteses da sua função é auxiliar a abertura da concha, fornecendo um momentum adicional de abertura. Lembrando que a abertura das valvas da concha nestes bivalves é passiva, o animal usa seus músculos para mantê-la fechada. Ou seja, a abertura da concha é dependente da elasticidade dos ligamentos no umbo, e da elasticidade da própria concha. Desta forma, estas estruturas alares podem contribuir para manter a concha aberta contra a força do sedimento que envolve estes moluscos quando enterrados. Outra explicação proposta envolve uma função de impedir o afundamento excessivo do animal em substratos muito finos e instáveis (efeito "raquete de neve"), o que causa estranheza, dada à posição em que se enterram. Um colaborador do site fotografou alguns destes bivalves caminhando em bancos de areia rasos, com a região do umbo para frente (veja abaixo), uma especulação interessante (embora não haja nada publicado corroborando-a) é a de que estas projeções alares possam, de alguma forma, facilitar a locomoção destes animais.
Prisodon
obliquus, coletados no Rio Itaya, em Loreto, Peru. Esta espécie é encontrada também no Brasil. Fotos de Mark Sabaj Perez.
Paxyodon syrmatophorus, outra espécie de Prisodontini fotografados em Santarém, PA. Fotos de Nelson Wisnik.
Fotos mostrando a náiade Paxyodon syrmatophorus caminhando em um banco de areia em águas rasas, note a trilha demarcada na superfície da areia nas duas fotos. Em destaque na segunda foto, o bivalve (fotografado e devolvido ao local na mesma posição). Registro feito à noite, na margem direita do Rio Tapajós, em Jutuba, Santarém, PA. Fotos de Nelson Wisnik.
Paxyodon syrmatophorus (coletado com Prisodon alatus), um exemplar com as projeções alares bastante desenvolvidas. Foto gentilmente cedida por Jose Liétor Gallego.
Triplodon
corrugatus, outro Prisodontini que também ocorre no Brasil. A última foto mostra exemplares juvenis. Coletados no Rio Itaya, em Loreto, Peru. Fotos de Mark Sabaj Perez.
Destacamos também em três artigos separados a Bartlettia stephanensis (Mycetopodidae, veja o artigo aqui ), uma interessante espécie chamada popularmente de "Ostra de Rio", que habita fendas de rochas e outros substratos sólidos, e tem a concha deformada à medida que cresce, amoldando-se a estas fendas. Outras espécies convergiram numa forma ultra-alongada, lembrando os "lingueirões" marinhos, um artigo descrevendo as espécies e os motivos desta adaptação pode ser visto aqui ). Finalmente, temos as Castalia, um gênero comum, com peculiaridades interessantes na sua morfologia e reprodução, seu artigo pode ser visto aqui .
Bartlettia stefanensis, coletado no parque nacional Alto Purús, em Ucayali, Peru. Foto de James Albert.
Náiades com a concha ultra-alongada, Lamproscapha ensiformis, fotografados no Rio Itaya, em Loreto, Peru. Fotos de Mark Sabaj Perez.
Ciclo
de vida
São
os únicos bivalves conhecidos que apresentam uma fase larval ectoparasitária
obrigatória, temporária, envolvendo um vertebrado (quase sempre um peixe). São animais
ovovivíparos, uma adaptação frequentemente encontrada em bivalves de água doce.
A maioria das espécies são dióicas, mas existem hermafroditas. No Brasil,
a reprodução ocorre nos meses frios, de abril a julho. Machos liberam uma grande quantidade de gametas diretamente na água.
Estas entram na cavidade palial das fêmeas através da abertura inalante, o
mesmo trajeto por onde passa água e alimentos. Na câmara suprabranquial
encontram os óvulos, onde há fertilização. Os ovos fertilizados são
transferidos para as câmaras branquiais, onde existe uma cavidade modificada,
um saco incubador chamado de marsúpio. Neste local se desenvolvem os embriões,
até a fase de larva. O tempo de desenvolvimento é variável, de semanas a meses.
Diagrama mostrando um ciclo de vida típico de uma Náiade. Fotos de Cinthia Emerich (imagem ilustrativa de Aequidens aff. rivulatus) e Ricardo Cunha Lima (Diplodon expansus, extraída da sua tese).
Geralmente estas
larvas são simplesmente liberadas na água através da abertura exalante da
fêmea. Em algumas espécies as larvas são liberadas envoltas por um envelope
mucilaginoso, chamado de conglutinados. Algumas espécies norte-americanas são
ainda mais especializadas, produzem o que se chama de super-conglutinados,
grandes aglomerados alongados que podem chegar a algumas dezenas de centímetros. Outros produzem ovisacos com sofisticadas formas que mimetizam larvas de insetos ou peixes, inclusive com uma área escura
imitando olhos. São devoradas por peixes, e neste momento as larvas são
liberadas, se fixando nas guelras. Existem também espécies exóticas com formas bem interessantes de atrair os peixes hospedeiros, como estruturas anatômicas mimetizando presas, como podem ser vistas abaixo. Recentemente foi descrito um mecanismo semelhante, embora menos elaborado, na Castalia ambigua, maiores informações aqui .
Náiades norte-americanas com "iscas de pesca" (fish lure), estruturas para atrair peixes no momento da liberação das larvas parasitas. No primeiro vídeo, Lampsilis reeveiana filmado em um aquário, com uma extensão membranosa do manto que mimetiza um pequeno peixe. Quando o peixe hospedeiro ataca a isca, ele rompe a marsupia entre as membranas do manto, liberando os gloquídios. No segundo vídeo, Villosa iris mimetizando os movimentos de um pequeno lagostim, inclusive suas quelas se abrindo e fechando. Filmado em Swan Creek, Taney County Missouri, pelo Dr. Bill Roston. Vídeos cortesia de M. C. Barnhart (Unio Gallery, veja link ao final do artigo).
Ovisacos de duas espécies de náiades
norte-americanas do gênero Ptychobranchus, as duas primeiras fotos mostram P. occidentalis, com seu ovisaco mimetizando pequenos peixes. As demais mostram Ptychobranchus subtentum, com ovisacos mimetizando pupas de borrachudos. A última foto mostra um gloquídio emergindo do "olho" do ovisaco. Nas duas espécies, sua extremidade "caudal" tem um material adesivo, que o fixa em rochas, e a corrente d´água faz se movimentar como um pequeno animal. Fotos de M. C. Barnhart (Unio Gallery, veja link ao
final do artigo).
As larvas são
organismos altamente especializados para a vida parasitária, de vida curta, sem
capacidade de natação, chamadas de Gloquídio (família Hyriidae) ou Lasídio/Haustório
(família Mycetopodidae). São diminutas formas livres, com morfologias
distintas, mas ambas possuem adaptações para se fixarem mecanicamente nos
tecidos do hospedeiro (guelras, escamas ou nadadeiras), como ganchos e conchas bivalves que se fecham sobre o
tecido epitelial. Após o ancoramento no tecido, há a reação do hospedeiro, com
proliferação do tecido epitelial que encista a larva, e dentro deste cisto a
larva se desenvolve. O período de desenvolvimento é variável, de dias a meses,
dependendo da espécie de Náiade e condições ambientais. Aparentemente espécies
diferentes de Náiades parasitam espécies específicas de peixes, numa interação
que envolve até a resposta imune do peixe. A lista de peixes-alvo que podem ser
parasitadas é muito grande, os mais comuns pertencem ao grupo dos caracídeos e
ciclídeos.
Gloquídios de Diplodon suavidicus, imagens de microscopia eletrônica de varredura. Fotos gentilmente cedidas por Daniel Pimpão.
Para nós,
aquaristas, um ponto bem interessante é o seguinte: estas larvas encistadas
envoltas por reação epitelial dos peixes ficam com um aspecto esbranquiçado,
um pouco menores que 1 mm. Em número variável, dispersas no corpo e nadadeiras dos
peixes, além das guelras. São idênticas ao Íctio! São menos numerosas, e uma
dica é a estabilidade delas, sem melhora ou piora independente do tratamento
(ou a falta de tratamento).
Então finalmente a
forma juvenil se desprende do peixe hospedeiro, e passa a ter um modo de vida
bentônico e filtrador. A fase parasitária permite também uma maior dispersão
ambiental destes animais, em muitas espécies esta fase é sincronizada com a
“piracema”, permitindo a disseminação do molusco rio acima. Em todo este
processo, há alta mortalidade das larvas, menos de 1% das larvas chega à fase
adulta.
Na realidade,
existem Náiades que não apresentam esta fase parasitária, com desenvolvimento
até a fase de pós-larva dentro do marsúpio, mas são mais infreqüentes. Um exemplo nativo é o gênero Rhipidodonta.
Como curiosidade, existe um gênero de ácaro aquático (Unionicola), mais da metade das espécies deste gênero são especializadas em viverem como parasitas nestes bivalves. Outros hospedeiros são larvas de quironomídeos, esponjas e outros moluscos aquáticos.
Diplodon
delodontus em um
riacho de Nazaré Paulista (SP). Fotos de Walther Ishikawa.
Náiade Diplodon
delodontus em um riacho, com seu
grande pé muscular exposto. Foto de Walther Ishikawa.
Diplodon
delodontus, animal
semi-enterrado, as aberturas inalante e exalante expostas, com seus curtos
tentáculos. Foto de Walther Ishikawa.
Diplodon
aethiops, fotografado em Rio do Campo, SC. Foto de Douglas Meyer.
Náiades Gigantes Anodontites trapesialis em um pesqueiro em Valinhos (SP). Fotos de Walther Ishikawa.
Anodontites trapesialis, animal
semi-enterrado mostrando sua extremidade posterior, com as aberturas inalante e exalante. Foto de Walther Ishikawa.
Náiade Anodontites trapesialis se enterrando no substrato lodoso, em um pesqueiro em Valinhos (SP). Note o grande pé muscular de cor clara, à esquerda. Foto de Walther Ishikawa.
Veja a segunda página do artigo aqui .
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