Cyanocyclas brasiliana, fotografado no delta do Rio Paraíba, PI. Extraído da referência 12 (Brito CSF, et al. 2015), licença Creative Commons. Foto de Carla Suzy Freire de Brito.
Cyanocyclas (Neocorbicula)
Juntamente com o
Mexilhão-dourado, as Corbículas representam um importante grupo de moluscos
bivalves invasores, presentes na maioria das bacias hidrográficas brasileiras,
e com expressivos impactos ecológicos e econômicos. Porém, uma informação
essencial e pouco difundida é que existem espécies de bivalves límnicos nativos
da mesma família das Corbículas, que podem ser facilmente confundidas com as
espécies invasoras, correndo o risco de serem inadvertidamente destruídas. Este
é o tema deste artigo.
Cyanocyclas cf. paranacensis,
coletados no Rio da Lança, em Mafra, SC. O maior exemplar mede cerca de 10 mm. Fotos gentilmente cedidas por Ana Marta Schafaschek.
Identificação
e taxonomia
Corbículas (Corbicula spp.) pertencem à família Cyrenidae
(anteriormente Corbiculidae), e estão presentes no Brasil como importates
espécies invasoras. Maiores informações podem ser vistas no artigo específico aqui .
A família Cyrenidae
também é representada na América do Sul por dois gêneros nativos, o endêmico Cyanocyclas Blainville, 1818 (previamente
Neocorbicula Fischer, 1887), e Polymesoda Rafinesque, 1828. Os Polymesoda ocorrem em águas salobras no
Norte do continente, com pouquíssimos registros no Brasil, e não serão abordados
aqui. Ambos os gêneros apresentam sifões longos e separados, cuja musculatura
basal deixa demarcado na superfície interna das valvas uma pequena reentrância na
forma de um sinus palial, o que os distingue das Corbicula.
Dois exemplares de Cyanocyclas limosa, fotos gentilmente cedidas por Jose Liétor Gallego.
Mais de 30
espécies de Cyanocyclas são
descritas, porém, muitos pesquisadores acreditam que há necessidade de revisão,
com prováveis sinonímias. A literatura mais aceita divide as espécies em três
grupos, aquelas habitando as bacias do sul do Brasil e dos rios Paraná-Paraguai
e Uruguai (C. limosa e C. paranensis), Amazonas (C. amazonica e C. brasiliana, esta última identificada recentemente também no
delta do Parnaíba, PI), além de espécies do Norte da América do Sul (fora do
território brasileiro). O primeiro grupo inicialmente incluía várias outras
espécies que foram consideradas não-válidas. Porém, um trabalho recente do
Uruguai usando marcadores genéticos mostrou que são válidas também as espécies C. exquisita, C. fortis e C. guahybensis.
Geralmente medem até 24 mm, mas
existem relatos de exemplares maiores de até 35 mm. Lembram bastante as Corbicula, as chaves de identificação
baseiam-se nos seguintes achados das conchas para a sua diferenciação:
- Polymesoda com sinus palial, dentes laterais lisos.
- Cyanocyclas com sinus palial, dentes laterais
serreados, superfície externa não ondulada.
- Corbicula sem sinus palial, dentes laterais
serreados, superfície externa ondulada.
Cyanocyclas limosa,
coletado no Rio Uruguay, Gualeguaychú, Entre Rios, Argentina. Fotos gentilmente cedidas por Susana Escobar.
Cyanocyclas paranensis,
coletado no Rio de la Plata, Berazategui, Buenos Aires, Argentina. Fotos gentilmente cedidas por Susana Escobar.
Ciclo de vida
Vivem semi-enterrados
no substrato, semelhante aos Corbicula, filtrando alimentos da coluna
d´água. C. limosa ocorre
em locais com profundidades entre um e dois metros. Há registros antigos de até
2500 indivíduos/m2 no RS, mas em declínio devido à competição com os
Corbicula. Preferem substratos
arenolimosos, mas podem ocorrer também em outros substratos. Quando coexistem
com Corbiculas, são mais comuns em
fundo lodoso, já que a espécie invasora tem preferência por substratos
arenosos.
Quanto à reprodução, só existem estudos
realizados para a espécie Cyanocyclas
limosa. A espécie é
hermafrodita e incuba os embriões por longos períodos de tempo, liberando-os grandes,
e com forma semelhante ao adulto. Considerados euvivíparos (incubação
prolongada), no marsúpio são encontradas de 20 a 25 jovens (excepcionalmente
até 45) que medem entre 1 e 4,5 mm, sendo que os menores localizam-se na sua
porção ventral, junto à borda das demibrânquias, enquanto os maiores são
encontradas na sua parte dorsal. O comprimento dos embriões pode chegar a ¼ do
comprimento da concha-mãe. Podem coexistir até duas gerações na cavidade palial
(talvez até quatro), sendo eliminados aos poucos durante o ano, de forma
não-sincronizada. O grande tamanho atingido pelos embriões impossibilita a
expulsão dos mesmos através do sifão exalante, via câmara suprabranquial, sendo
que sua liberação ocorreria por ruptura das demibrânquias. Uma vez liberados,
irão se instalar nas proximidades da concha-mãe.
Esta característica peculiar determina que não ocorra a
fase larval livre e, desta forma, os juvenis adotam de imediato a fase
bentônica. Tal fator limita a capacidade de dispersão da espécie e restringe
sua distribuição espacial. Alguns trabalhos mencionam também uma maior
fragilidade destes juvenis, mais lentos e menos ativos do que os Corbicula de igual dimensão, morrendo
com facilidade durante o seu transporte entre a coleta e a chegada aos
laboratórios, ou quando permanece em recipientes sem circulação, o que não
ocorre com os Corbicula.
Há dois picos anuais de reprodução para C. limosa na região do rio la Plata, e
também Guaíba, com maior liberação de jovens no verão e inverno. Indivíduos a
partir dos 8~9 mm de comprimento podem ser considerados sexualmente maduros.
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Agradecimentos a Carla Suzy Freire de Brito, Ana Marta Schafaschek, Jose Liétor Gallego (Espanha, El Rincón del Malacólogo ) e Susana Escobar (Argentina, responsável pelo blog Moluscos Dulceacuicolas de Argentina ) por permitir o uso do seu material fotográfico. As fotografias
de Carla Suzy Freire de Brito (extraída da referência 12) e Susana Escobar estão licenciadas sob
uma Licença Creative Commons . As demais fotos têm seu "copyright" pertencendo aos
respectivos autores.
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