Outra espécie de caramujo bastante comum em aquários é o Caramujo-trombeta, Melanoides tuberculata (O. F. Müller, 1774). Ele é muitas vezes referido em sites em inglês
pelo acrônimo MTS ("Malaysian Trumpet Snail"), ou como "Red-rimmed Melania". Seu nome genérico vem da semelhança com caramujos do gênero Melania. E tuberculata se refere ao aspecto esculturado e com tubérculos da sua concha. Embora em literatura científica seja mais comum encontrá-lo grafado desta forma, alguns autores defendem que o nome correto é Melanoides tuberculatus, já que o sufixo -oides denota uma palavra masculina.
São geralmente pequenos, medindo
cerca de 3~4 cm, mas existem relatos de animais norte-americanos com até 8 cm de comprimento. Possuem
uma concha alongada e em forma de torre, rugosa e esculturada, com finos vincos
verticais. Cor clara marrom ou esverdeada, com pequenas manchas
vermelho-ferrugem. Possuem um opérculo escuro. Sua cabeça é achatada, parecendo
uma língua. Possui duas antenas delgadas, com pequenos olhos junto à base. Podem
ser confundidos com o gênero nativo Aylacostoma,
relativamente comuns na bacia do alto Paraná (veja sua ficha aqui ). Uma das formas de distinguí-las é pela presença de projeções papilares na borda do manto, parecendo pequenos tentáculos.
É uma espécie originária de climas tropicais e
subtropicais, sua distribuição nativa é bem ampla, do oeste da África ao
sudeste da Ásia. Foi inicialmente descrita a partir de espécimes da Índia, mas análises filogenéticas sugerem uma origem africana. É encontrada como espécie invasora em todo o cinturão intertropical do globo, nas três Américas, Europa e Oceania. Mesmo na sua distribuição nativa africana, são encontradas populações invasoras de outras localidades. É uma das espécies com maior
capacidade de bioinvasão, como veremos adiante. No Brasil, já foram detectados
em 19 estados, além do Distrito Federal. O primeiro registro é de 1967, em
Santos (SP), e acredita-se que estes tenham sido animais liberados na natureza
por aquaristas, semelhante ao que ocorreu nos EUA. Um trabalho recente (2014) realizado em Sergipe mostra que o aquarismo continua sendo uma importante fonte de introdução e dispersão desta espécie invasora.
Close de um Melanoides
tuberculata sobre um caramujo planorbídeo. Vejam como esta espécie tem um
"pescoço" bem evidente. Foto de Walther Ishikawa.
Filogenética
Achados interessantes têm surgido em publicações recentes, envolvendo análises moleculares destes caramujos. Dois trabalhos se destacam, onde foram realizadas análises de DNA mitocondrial (COI, 16S e 12S) de um grande número de animais amostrados de mais de 40 populações distribuídas ao longo do globo (Facon e cols. 2003 e Van Bocxlaer e cols. 2015). Foi vista uma grande heterogeneidade genética no que hoje é chamado de Melanoides tuberculata, caracterizando pelo menos quatro clados distintos, três deles com distribuição geográfica bem definida (África e Oriente Médio, Pacífico e Sudeste Asiático). Trata-se de um táxon parafilético, muito provavelmente um complexo de espécies ao invés de uma única espécie. Os espécimes brasileiros (de Sumidouro, RJ) se inserem no Clado 4, um clado grande e heterogêneo com origem no Sudeste Asiático, o clado incluindo outros caramujos de outras localidades americanas (EUA, México, Peru), e alguns exemplares africanos. Parece haver dois morfotipos principais nos exemplares de Melanoides presentes em aquários no Brasil: uma forma com esculturação mais forte, e pigmentação mais demarcada, e outra mais lisa e com cor mais homogênea.
Diversos morfotipos de Melanoides
tuberculata coletados na África. Imagem extraída de Van Bocxlaer B. et al. BMC Evolutionary Biology (2015). Licença Creative Commons. O artigo original pode ser visto aqui .
Morfotipo "liso" de Melanoides
tuberculata, junto com um morfotipo habitual. Fotos gentilmente cedidas por João Vítor Serrano Linhares.
M. tuberculata, exemplares de Fortim, CE. Fotos cortesia de João Pedro Pereira d. C.
Close na região cefálica de um Melanoides
tuberculata. Note as projeções na borda do manto. Fotos de Fernando Barletta.
Melanoides nos aquários
É bastante controverso se a presença destes caramujos é
benéfica ou maléfica no aquário. Muitos aquaristas defendem suas qualidades,
alegando até que é uma presença obrigatória em todos os aquários. Não é um
animal que destrói plantas, é útil se alimentando de restos de ração e folhas
mortas, e não deposita ovos nos vidros. Tem hábitos noturnos, passa o dia
enterrado no substrato, sua presença passando quase despercebida. Geralmente se
alimenta enquanto está enterrado, de detritos em meio ao cascalho, em locais de
difícil acesso à sifonagem. Elimina fezes em meio ao cascalho, adubando as
plantas. Neste processo, caminha por baixo do substrato, evitando a sua
compactação e propiciando a circulação junto às raízes das plantas. Porém, se
enterra somente nas camadas mais superficiais, não chega a escavar buracos, ou
expor a camada fértil. Quando vemos o substrato se mexendo durante dia, são os
Trombetas caminhando. Alguns aquaristas até mantém uma colônia destes caramujos
dentro do filtro.
Porém, é um animal com uma taxa de reprodução impressionante,
e infestações em aquários são bem comuns. Embora dióicos, são caramujos que se
reproduzem quase sempre por partenogênese, gerando cópias de si mesmo sem
fecundação. São vivíparos (na realidade, ovovivíparos), não botando ovos, e
gerando diretamente pequenos caramujinhos com 1 a 2 mm. E estes atingem
maturidade sexual rapidamente, estando aptos à reprodução com cerca de 3 mm. Nos aquários, muitas
vezes a superpopulação mal é perceptível durante o dia. Entretanto, à noite
saem às centenas do substrato, escalando os vidros do tanque, para se
reproduzirem próximo à superfície. Na natureza, já foram descritas densidades
de até 100.000 animais por metro quadrado.
Melanoides
tuberculata sobre um
galho submerso. Veja os pequenos olhos. Foto de Walther Ishikawa.
M.
tuberculata caminhando
no vidro. Note o pé curto e largo, com pequenos pontos de pigmentação. Foto de
Walther Ishikawa.
M. tuberculata no aquário, fotos cortesia de João Pedro Pereira d. C.
Caramujos indestrutíveis?!
São animais bastante robustos, sendo encontrados em
ambientes degradados, hipóxicos e poluídos. É tolerante à salinidade, em um trabalho brasileiro, a concentração letal para 50% (CL50) foi de 22,8%o, mas em condições experimentais pode sobreviver por curtos períodos a uma salinidade de até 45%o. Mesmo na natureza, já foi coletado em locais com salinidade próxima do mar (35%o). Tolera também uma ampla faixa de
temperatura, entre 16 e 37º C. Entretanto, resiste por algum tempo em condições
ainda mais extremas, sendo registrados casos de disseminação desta espécie
junto a pescados conservados em
gelo. A temperatura letal também é alta, de 50º C. São menos
propensos a erosão das conchas, podendo assim ser mantido em pHs mais baixos.
Existe um trabalho norte-americano bem interessante onde
foram avaliados catorze desinfetantes e moluscidas, e seu efeito sobre o Melanoides (Mitchell et al.). Nenhuma das catorze substâncias
conseguiu exterminar todos os moluscos em imersão de 10 minutos. Com uma hora
de imersão, houve morte de todos os caramujos somente com dois desinfetantes
laboratoriais (Roccal® e Virkon®). Outros medicamentos conseguiram exterminar
os animais somente com 24 horas de imersão (o antiparasitário Niclosamida e o
herbicida Endothol). É interessante notar também os vários tratamentos que não
exterminaram todos os caramujos: Água sanitária pura, Etanol 70%, Formaldeído
10%, Permanganato de Potássio a 1000 ppm, Sulfato de Cobre, o desinfetante Lysol®,
e o desinfetante de piscinas Baquacil®. Neste mesmo trabalho, os caramujos
sobreviveram por uma hora em ambientes com pH de 1,0 e 13,0. Outra tese brasileira de 2002 estudou a sobrevivência à dessecação desta espécie, com exemplares de açudes do semi-árido paraibano. Mesmo após 26 meses de dessecação, 1% dos pouco mais de 500 animais analisados continuavam vivos e férteis.
Desta forma, quando se instalam nos nossos aquários,
eliminá-los é quase impossível. Existem diversos relatos de aquários
desmontados e desinfetados, sem sucesso na sua erradicação. Geralmente sua
população se estabiliza, não havendo superalimentação e com limpezas
periódicas. Alguns peixes comem estes caramujos, como Botias, Baiacus e
Paraísos, mas os Melanoides possuem
conchas mais duras e espessas, dificultando a predação. Na natureza, o Leporinus muitas vezes é usado como
agente de controle biológico.
Grande quantidade de conchas de M.
tuberculata às margens do Açude / Reservatório da Marcela, em Itabaiana, SE. Foto de Juliano Ricardo Fabricante.
M. tuberculata no aquário, fotos cortesia de João Pedro Pereira d. C.
Aspectos médico-sanitários
Esta espécie de caramujo tem importância
médico-sanitária, em virtude de duas razões: o caramujo é o primeiro hospedeiro
intermediário de vários vermes trematódeos, alguns dos quais parasitam o homem
e, além disso, vem sendo empregado em certos países no controle de planorbídeos
susceptíveis à infecção por Schistosoma
mansoni.
O Trombeta constitui um dos elos
na cadeia de transmissão natural do Clonorchis sinensis, Centrocestus formosanus e Paragonimus westermani,
três vermes patogênicos para o homem.
Clonorchis sinensis, parasita das vias biliares do homem, ocorre em
vários países asiáticos. Seus ovos, eliminados com as fezes do portador, são
deglutidos por caramujos (várias espécies, dentre eles, o Melanoides), aonde vão se desenvolver. Originam formas livres que
penetram e se encistam em cerca de oitenta espécies de peixes. O hospedeiro
definitivo infecta-se ao comer o peixe cru ou mal cozido, conforme é hábito nos
países asiáticos. Existem vários casos da doença descritos no Brasil. Centrocestus formosanus causa uma infecção intestinal, com casos registrados na Ásia, México e Colômbia, sem casos ainda no Brasil. Os reservatórios do verme incluem ratos, gatos, cães, galinhas e patos. Aqui também a rota de infecção humana é ao comer o peixe cru ou mal cozido. Paragonimus westermani é um parasita que se aloja no pulmão, cujo primeiro hospedeiro intermediário são gastrópodes como o Melanoides, e o segundo hospedeiro intermediário são caranguejos e camarões de água doce. São doenças endêmicas no Peru e Equador, mas com casos registrados em outros países, inclusive Brasil. O ser humano infecta-se ao comer o crustáceo cru ou mal cozido, como em alguns pratos tradicionais destes países.
Assim como os Planorbídeos e Lymnaea, uma das maiores causas de
introdução destas espécies na natureza (se não a maior) são aquaristas. Muito
cuidado deve ser tomado na eliminação de água de TPAs, restos de podas e
substrato na natureza, evitando seu contato com corpos d´água. Ainda mais
porque, sendo operculados, os Melanoides
podem sobreviver muito tempo fora d´água, especialmente se o ambiente for
úmido (anos!). Por outro lado, não há risco médico na manutenção destes caramujos para
o aquarista (somente se alguém tiver o hábito de comer os seus peixes de aquário crus!).
Mas sempre é bom lembrar que estes caramujos podem abrigar vários outros
parasitas de peixes e outros animais. Por exemplo, um parasita intermediado por
este caramujo está colocando em risco uma espécie ameaçada de extinção no Texas
(EUA). Existe um trabalho onde foram identificadas 37 espécies de trematóides
numa população de Trombetas. Em 2013 foi detectado como sendo um reservatório natural de WSSV na região litorânea do Paraíba. Assim, muita cautela na introdução proposital
destes caramujos no aquário, se forem coletados na natureza, ou tiverem origem
suspeita.
Paradoxalmente, apesar de todos
os riscos descritos acima, o Melanoides
já foi muito utilizado como agente de controle biológico. Por ser uma espécie
muito prolífica, em determinadas circunstâncias consegue excluir, por
competição, outros moluscos com que convive no mesmo meio. Ainda é usado para
controle biológico do vetor da esquistossomose na República Dominicana e Porto
Rico, e o foi por muito tempo em nosso país. Nos locais onde foi introduzido,
houve sucesso na redução da população de Biomphalarias,
mas muitas vezes à custa de extinção da malacofauna nativa.
Melanoides
tuberculata, nesta
foto é bem visto o aspecto da sua concha. O opérculo também é visível. Foto de
Walther Ishikawa.
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Agradecemos aos aquaristas Fernando Barletta, João Vítor Serrano Linhares e João Pedro Pereira d. C., e ao biólogo Juliano Ricardo Fabricante pela cessão das
fotos para o artigo.
As fotografias de Walther Ishikawa e aquela extraída de Von Bocxlaer B, et al. (2015) estão licenciadas sob uma Licença Creative Commons . As demais fotos
têm seu "copyright" pertencendo aos respectivos autores.
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