O artigo a seguir foi publicado no Portal "A Era de Aquários" (Aquahobby), de autoria de Marcos A. Avila, administrador do portal. O "Era" atuou desde 1997, e foi um dos grandes pioneiros na divulgação do aquarismo no início da internet brasileira, com um tradicional fórum de discussões, bastante ativo até 2010, quando vários problemas levaram à suspensão das suas atividades.
Participei como moderador deste fórum, onde aprendi muito, posso dizer com segurança que o fórum foi responsável por boa parte da minha formação como aquarista. Tive a oportunidade também de ajudar muitos colegas, naqueles tempos que, ao contrário de hoje, a informções sobre invertebrados era bastante escassa.
A idéia de publicar este artigo aqui nasceu com vários objetivos. O primeiro é que este é um excelente artigo, onde Marcos compartilha conosco sua visão pessoal e apaixonada sobre o aquarismo, sob um prisma muito pouco explorado por outros autores. Apesar do artigo se referir a "peixes", é totalmente aplicável aos nossos queridos invertebrados. Aproveito para citar o "Manifesto do Aquarista Responsável", também de autoria do Marcos, que abre o Portal. Em segundo lugar, sempre tive medo de que um dia, o site não esteja mais online, e todo este material seja perdido. E este, em especial, é um artigo que considero fundamental para todo aquarista. E finalmente, é minha homenagem ao "Era", onde eu (e diversos outros colegas do Planeta Invertebrados) nos conhecemos, e tivemos nossa formação no aquarismo. Foi nossa Escola, e Marcos foi um dos nossos Professores.
Walther Ishikawa
Manifesto do
Aquarista Responsável
1) Para cada espécie aquática, existe um conjunto de condições
acessíveis (tamanho mínimo de aquário, companheiros, parâmetros da água,
nutrição, etc.) nas quais ela pode ser mantida apropriadamente em cativeiro
sem perda geral na sua qualidade de vida.
2) Para cada espécie aquática, existe um conjunto de procedimentos acessíveis
para desenvolver programas de reprodução comercial, ou de coleta controlada,
de forma a garantir um desenvolvimento sustentável para o ramo de aquarismo
sem causar ameaça a longo prazo para as populações selvagens.
3) O aquarismo responsável é baseado na busca, aprendizado, desenvolvimento e
promoção da consciência a respeito destas condições e procedimentos, tal que
a nossa prática amadora ou profissional do hobby não ocorra às custas do bem
estar dos nossos animais de estimação, nem em detrimento do ecosistema.
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Peixes em Cativeiro: a Questão Moral
Introdução
Você já
parou para pensar se o que está fazendo como aquarista é certo ou errado do
ponto de vista moral? Já foi questionado com respeito a isso? Saberia defender
a sua posição? Esse é um assunto bastante complexo que precisa ser resolvido
dentro da cabeça de cada um, pois envolve muitos fatores culturais, religiosos
e de criação familiar.
Pelo mundo
afora vamos encontrar gente de todo tipo, desde os que não estão nem aí se um
peixe está sendo maltratado ou não pois 'afinal é só um peixe', até os que
santificam qualquer animal como sendo uma criatura 'divina' e portanto não cabe
ao homem decidir sobre a vida e a morte deles. Entre estes dois extremos existe
uma vasta faixa de possibilidades para você se posicionar moralmente, mas o
problema é que muita gente acaba formando sua opinião ou 'moral', pendendo para
um lado ou para outro, sem sequer ter um mínimo de informação que fundamente a
sua posição ou, pior ainda, baseado em mitos e conceitos simplesmente errados.
O dilema moral de um aquarista responsável e preocupado na verdade são dois:
1) Ao
comprar os peixes não estamos sustentando um ramo de atividade que promove
exploração da natureza?
2) Um
peixe mantido em cativeiro, sem liberdade de ir onde quiser, não leva uma vida
infeliz?
Neste artigo
vou expor um pouco da minha própria visão no assunto, que obviamente vai pender
em favor do aquarismo responsável e consciente que é a proposta geral deste
site inteiro, mas espero também conseguir te dar alguns elementos menos
subjetivos para você pensar e tirar as suas próprias conclusões.
Criação
vs. Coleta
Para abordar
corretamente o primeiro dilema, a primeira coisa importantíssima a se perceber
é a distância ENORME que existe entre um peixe criado em cativeiro e um peixe
coletado da natureza. Como infelizmente ambos os tipos são vendidos sem
distinção nas lojas, é comum que o aquarista não perceba a importância desta
diferença.
É preciso
entender que no caso de criações, os peixes têm tanto a ver com a natureza e
ecologia quanto aquele frango ou boi que você comeu no almoço de hoje! Esses
peixes foram CRIADOS por nós humanos em aquários ou grandes tanques de
reprodução, com o objetivo bem específico de serem vendidos para alguém que vai
obter satisfação por tê-lo em sua casa, e em troca gerar receita ao seu criador
e ao comerciante que o vendeu. A única diferença dele em relação ao frango ou
ao boi é o objetivo final ao qual ele é destinado. Nesse aspecto os peixes
ornamentais devem ser encarados no mesmo nível de cães e gatos domésticos. Acho
que estão até em vantagem em relação ao frango e ao boi, exceto é claro os
pobres peixinhos que vão parar em aquários totalmente impróprios (a discussão
sobre mitos do aquarismo e o que é um aquário apropriado para cada espécie fica
para outro artigo).
Felizmente,
pelo menos no aquarismo de água doce, uma fração enorme das espécies mais
comumente encontradas nas lojas já são criadas em larga escala, e portanto um
aquarista procurando posicionar-se moralmente pode perfeitamente curtir o hobby
comprando apenas espécies já criadas em cativeiro, equiparando o seu hobby com a
criação de cães e gatos como já mencionado, e sem nenhum impacto na natureza.
Uma boa loja de aquarismo sempre saberá dizer a você quais espécies das
disponíveis provém de criadores comerciais e quais são coletadas.
Um argumento
a mais e extremamente positivo para quem deseja posicionar-se desta maneira é
que já existem diversas espécies de peixes que estão seriamente ameaçadas e
algumas já até extintas na natureza, não por causa de coleta excessiva mas
devido à redução ou destruição do seu ambiente natural pelo avanço da
civilização em nome do 'progresso' (leia-se desmatamento, poluição, etc) e
estas espécies só continuam existindo e tendo chances de um dia serem
reintroduzidas na natureza devido à criação comercial delas em cativeiro para o
aquarismo!
Já no caso
do aquarismo marinho a situação geral se inverte...a esmagadora maioria das
espécies ainda é coletada da natureza. Ainda estamos engatinhando no lento
processo de compreensão e desenvolvimento das técnicas de como reproduzir
peixes marinhos em cativeiro, por isso o nível de conscientização e
responsabilidade do aquarista marinho deve ser bem maior.
Este segundo
caso, dos peixes que pertenciam ao mundo natural e foram coletados para
manutenção em aquários domésticos, inegavelmente afeta a natureza em maior ou
menor grau. Ainda assim, não devemos imediatamente condenar a prática sem antes
entender alguns aspectos importantes sobre ela. São necessários estudos
cuidadosos para saber se a natureza está sendo capaz de repor essa perda sem
prejuízo a longo prazo para ela. Isto é o que se chama desenvolvimento
sustentável, um termo bastante atual em quase todos os ramos que fazem
exploração de uma forma ou de outra dos recursos naturais.
A prática
questionável acontece quando a exploração (no nosso caso, a coleta dos peixes)
é feita demasiadamente ou descontroladamente, (por exemplo em épocas de
acasalamento), o pode que levar certas espécies a reduzirem continuamente a sua
população até passarem a sofrer risco de extinção. Felizmente existem
estudiosos, entidades e órgãos governamentais (por exemplo o IBAMA) que dentre
outras coisas estão fazendo esforços sérios e concretos para entender a
situação de cada espécie, regulamentar melhor a atividade de coleta e garantir
o desenvolvimento sustentável com respeito a elas. A Era de Aquários já foi
inclusive consultada pelo IBAMA a esse respeito e estará sempre à disposição
para ajudar no que puder.
Pois bem,
mesmo o peixe sendo coletado, como eu já disse acima, se isso for feito de tal
modo que a natureza seja capaz de repor a perda a longo prazo (e a natureza tem
um capacidade fantástica de fazer isso, basta usar o bom senso e não abusar
dela), é possível resolver o dilema moral da exploração dos recursos naturais,
e ficar apenas com o dilema moral da qualidade de vida do peixe em si, que
estará no cativeiro.
Liberdade
e Felicidade
Neste ponto
entra uma segunda confusão muito comum, principalmente entre leigos e
conservacionistas radicais, que é a armadilha do "antropomorfismo".
Essa palavra complicada significa transferir aos animais (ou qualquer outra
coisa) nossos conceitos, características e valores humanos. Simplificado para o
nosso caso em questão, é o seguinte: a gente tem um conjunto de valores,
expectativas, metas, etc, características da raça humana, e quando essas coisas
nos são reprimidas ou negadas, ficamos infelizes. Aí, olhamos para um animal e
se ele parecer estar sendo negado um valor que para nós humanos é importante,
automaticamente concluímos que ele só pode estar infeliz também.
Mas isso não
é necessariamente verdade, é preciso saber se aquele valor ou espectativa é
realmente importante para o animal em questão. Só pra dar um exemplo bem
gritante, imagine alguém achar que um cachorro deve ser infeliz porque só bebe
água a vida toda, e nunca experimentou nada delicioso como um guaraná ou um
suco de laranja.
De maneira
geral, as expectativas dos animais na vida são MUITO, mas MUITO menos complexas
que a de nós humanos. Eu lembro de ter visto um estudo americano de
comportamento de cães, demonstrando que o conceito de "paraíso" para
um cão parece ser realmente nada mais que ficar deitado o dia todo, a vida
toda, sem precisar fazer absolutamente nada, o que para um ser humano típico
seria um suplício a longo prazo.
Voltando aos
peixes em aquário, é muito importante não cair na armadilha de imaginar como
"nós" nos sentiríamos se estivéssemos na mesma situação deles, mas
sim buscar indícios de que eles estejam tendo as suas expectativas
razoavelmente preenchidas. E isso obviamente não é muito fácil de identificar,
mas de maneira geral podemos dizer que, se o peixe tem uma alimentação
satisfatória, apresenta uma saúde boa, tem uma interação normal com os seus
companheiros de aquário (podendo até formar pares e acasalar, mas isso não é um
requisito necessário pois também não acontece para todos na natureza), e o
aquário é tal que ele tem um desenvolvimento normal, então esse peixe está
verdadeiramente "feliz".
Não estou
aqui querendo dizer que peixes ou quaisquer outros animais sejam meros
autômatos, escravos da programação dos seus instintos. Muito pelo contrário,
como todo criador de peixes com alguns anos de estrada, posso identificar
perfeitamente (sem 'antropomorfismo') a presença de humores individuais em
muitos dos peixes que crio, conferindo a cada um uma personalidade única
característica de um ser superior, inteligente e emocional. Mas repito, apesar
do assunto ser atual e polêmico, me parece bastante razoável supor que os
peixes em geral têm expectativas muito mais simples e básicas do que nós:
comer, dormir, acasalar, e pouco mais. Ou seja, um peixe não vai daqui até alí
na natureza porque ele quer regojizar na sua liberdade e no seu arbítrio de
poder fazê-lo, nem porque ele quer apreciar o trajeto até lá enquanto discute
com os companheiros o milagre da sua existência. Ele vai até alí porque quer
ficar longe de potenciais predadores, achar comida, ou talvez uma companheira.
Se a comida e a companheira estiverem aqui mesmo e os predadores não estiverem,
melhor! Pra que ir até lá? "Liberdade" é um valor racional e bastante
humano, é preciso tomar muito cuidado ao transferí-lo para um animal.
Enfim, já
tendo passado por crises e até abandonado o hobby por um tempo no passado por
causa de dilemas morais assim, baseado nos argumentos expostos aqui neste
artigo hoje em dia eu tenho a convicção de que os meus aquários são tais que os
peixes gostam de onde estão morando, e tenho também a convicção de que o
esforço coletivo dos aquaristas responsáveis, em particular os que têm presença
forte na internet, está tendo um efeito muito mensurável na avanço do nosso
hobby. O importante é ter essa preocupação em mente todo dia ao olhar como
estão nossos peixes, e sempre fazer o possível pra manter e melhorar no que
puder.
Marcos A. Avila
Agradecimentos: Obrigado a Flávia
Carvalho, Amaury De Togni, Damian Jones e William Banik pelas sugestões que
ajudaram a melhorar esse texto!