Uma forma curiosa das Ampulárias se alimentarem de materiais flutuando no filme d´água.
Artigo
publicado em 16/05/2015, última edição em 16/12/2023
Alimentação
Pedal de Nêuston pelas Ampulárias
Vejam a foto acima. Muitos de vocês que criam Ampulárias em aquários já devem
ter presenciado esta cena, a Ampulária se dirige até a superfície da água,
forma um funil com a região anterior do seu pé, e capta alimentos e outras
partículas que estejam flutuando no filme d´água.
Nêuston
Há alguma controvérsia na definição de “Nêuston”, alguns autores usam uma
definição mais ampla, para o grupo de organismos habitando a camada mais
superficial de corpos d’água. Porém, a maioria dos pesquisadores se refere a
“Nêuston” como o grupo de organismos habitando a interface água-ar em habitats aquáticos,
acima (Epinêuston) ou abaixo (Hiponêuston) do filme d’água. Alguns exemplos são
os artrópodes que caminham sobre a água usando sua tensão superficial (como os
Gerrídeos e Aranhas-pescadoras), e animais marinhos flutuadores, como as
Caravelas. Geralmente se inclui também plantas flutuantes, como as Lemna, Wolffia e Azolla, e
também estágios inativos de organismos (pólen, sementes e esporos). É um termo
que se confunde e se sobrepõe com “Plêuston”. Todos são nomes usados em
Ecologia e Limnologia, do mesmo grupo de “Plâncton”, “Nécton” e “Bentos”, estes
três talvez mais familiares para nós, aquaristas.
Alguns aquaristas já conhecem o termo Nêuston, porque é como
alguns se referem ao biofilme bacteriano que se forma na superfície de aquários
plantados, com um aspecto iridescente parecido com uma camada oleosa.
Ampulária Pomacea lineata se alimentando na superfície, fotografado em um pequeno córrego em Ubatuba, SP. Fotos de Walther Ishikawa.
Coleta Pedal Superficial
Ampulárias tem uma grande plasticidade na sua alimentação, um
típico generalista, um dos motivos do seu grande sucesso como invasor. Neste
contexto, a Coleta Pedal Superficial (“pedal surface collecting”) de alimentos
é uma ferramenta bastante útil quando não há macrófitas disponíveis,
representando uma opção importante de fonte de alimentos. Porém, já se sabia
que Ampulárias consomem regularmente Nêuston, mesmo quando há outros alimentos
disponíveis.
Descrita brevemente em ampulárias desde artigos de 1952, é uma estratégia onde o
animal se dirige à superfície, mantém a região posterior do pé fixa a algum substrato, e forma um funil com a parte anterior do pé (pró-pódio),
coletando o material presente na superfície da água, que depois
de compactado com muco, é ingerido. Inicialmente achava-se que a coleta se dava por movimentação ciliar, por este motivo, também era referida como "alimentação ciliar". Um trabalho de 2020 mostrou que na realidade a coleta é feita por movimentos ondulantes do pé do molusco. Permite a captura de uma grande variedade de alimentos, como restos
orgânicos (pétalas, folhas, exúvias e corpos de insetos) e nêuston (como
pequenas plantas flutuantes). A interface ar-água também contém uma quantidade
significativamente mais alta de particulado e matéria orgânica dissolvida, além
da Monocamada Protéica, que também são ingeridas pela Ampulária.
É um comportamento mais visto após o entardecer, para evitar detecção por predadores emersos. Porém, é raro á noite, talvez pela redução na temperatura da água. Ocorre em Ampulárias de diversos tamanhos, embora seja rara nos indivíduos muito pequenos.
Muitos artigos destacam esta estratégia alimentar como sendo exclusiva de ampulárias. Porém, variações desta técnica são brevemente descritas em diversas espécies de caramujos marinhos e de água doce, como Lymnaea stagnalis
Qual o papel da CPS?
Uma equipe argentina liderada pela Dra. Lucía Saveanu (Universidad
Nacional del Sur) e Dr. Pablo R. Martín (CONICET) decidiram estudar em
laboratório a CPS, se ela era empregada mesmo quando macrófitas são
disponíveis, e se uma alimentação exclusiva de Nêuston permitiria um
crescimento adequado das Ampulárias. Seus resultados foram publicados em 2015,
na conceituada revista Limnologica.
Foi visto que a CPS é uma alternativa importante como fonte
trófica quando macrófitas são ausentes ou não-palatáveis. Mas seu trabalho
confirmou que os animais consomem nêuston mesmo quando o alimento preferencial
(macrófitas) está disponível. Parece haver alguma preferência por macrófitas,
se todos os demais parâmetros forem iguais: valor nutricional, palatabilidade e
disponibilidade.
Ampulárias Pomacea scalaris e Pomacea diffusa alimentando-se na superfície, em um aquário. Foto de Denise Caillean.
Representa uma forma complementar e alternativa de
alimentação, com vantagens e desvantagens. Muitas vezes o nêuston representa um
alimento mais nutritivo (por exemplo, maior conteúdo protéico de carcaças de insetos),
com maior recompensa. Oferece também uma vantagem energética em curto prazo, já
que a oferta de alimentos é continuamente reposta, o animal não necessitando
sair do lugar para procurar mais alimento. Porém, esta vantagem é parcialmente
contrabalanceada porque há maior gasto energético à custa de intensa atividade
ciliar necessária para esta captura. Importante lembrar também que há maior
imprevisibilidade na oferta de nêuston, uma variação relativamente grande de abundância
e composição, já que ele é dependente de variadas fontes, como vegetação
ripária e macrófitas emersas.
Foi visto também que houve crescimento adequado dos animais
alimentados somente com nêuston, mas um crescimento menor do que aqueles
alimentados com macrofitas. Desta forma, Ampulárias podem sobreviver em locais
sem macrófitas, em corpos altamente impactados, alimentando-se somente de nêuston,
além de outras fontes como resíduos orgânicos e perifíton.
Ampulária Pomacea scalaris se alimentando na superfície, em um aquário. Foto e vídeo cortesia de Natalia Albano de Aratanha.
Parece se tratar de uma adaptação bastante especializada para
as mudanças ambientais previstas nestes contextos de invasão: o consumo em
massa de macrófitas altera o padrão do corpo de água, de águas límpidas
dominadas por macrófitas para águas turvas dominadas por fitoplâncton. Isto
aumenta a disponibilidade de nêuston, por aumento de plâncton e aumento de
pequenas plantas flutuantes.
A adaptação a ambientes imprevisíveis talvez tenha favorecido a CPS, que é uma característica bem marcante em Ampulárias. Um
quadro muito semelhante ocorreu em outro grupo de gastrópodes límnicos parentes
dos Ampularídeos, que são os Viviparídeos asiáticos. Só perdem em tamanho para
os Ampularídeos, mostrando o quão bem adaptados são a estes ambientes
dinâmicos. Os Viviparídeos (como o Bellamya)
consomem essencialmente macrófitas, mas também evoluíram uma estratégia
alimentar complementar, seu ctenidío, um órgão respiratório, desenvolveu um
mecanismo associado de filtração e captura de pequenas partículas orgânicas e
plâncton (séston), além da sua função respiratória. Há também um canal ciliado para
transportar este material filtrado à boca do animal.
Coleta Pedal Superficial de Ampulária, formando o funil com seu pé. Imagens cedidas por Antonio Tetares.
Caminhando na superfície d´água, Surface Crawling
Diversos caramujos marinhos e de água doce conseguem caminhar de ponta-cabeça na superfície da água, Ampulárias inclusive, enquanto são pequenas. Quando maiores, perdem esta habilidade devido ao seu tamanho e peso. O mecanismo envolvido tem muito em comum com a CPS, acredita-se que as técnicas evoluíram uma da outra. Ao contrário do que possa parecer, não se trata somente do uso da tensão superficial para caminhar. O caramujo secreta uma fina camada de muco, e é sobre esta camada de muco que ocorre o caminhar, usando movimentos ciliares do seu pé.
Estes caramujos demonstram uma variação bem interessante de CPS: quando estão suspensos de ponta-cabeça, especialmente quando há nêuston, eles podem manter o movimento ciliar na porção anterior do pé, e interromper na sua porção posterior. Isto leva a uma parada na sua movimentação, mas o muco produzido é levado para a porção posterior do pé, onde se acumula. Depois de algum tempo, o caramujo flete o corpo, e se alimenta do muco acumulado, juntamente com partículas de nêuston. Autores alemães descreveram o fenômeno no final do século 19 em Lymnaea, chamando de "Planktonfischen" (pesca de plâncton), depois observados também em Physidae e Planorbiidae.
Pomacea diffusa juvenil caminhando logo abaixo da superfície da água, usando sua tensão superficial. Caramujos adultos perdem essa capacidade, simplesmente devido ao seu tamanho. Foto gentilmente cedida pela aquarista Nagila A. Oliveira.
Pequeno Pseudosuccinea columella, caminhando sob o filme d´água. Foto de Walther Ishikawa.
Bibliografia:
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Agradecimentos aos amigos aquaristas Juliana Jara, Denise Caillean, Natalia Albano Aratanha, Nagila A. Oliveira e Antonio Tetares (Espanha) por permitir o uso das suas fotos e vídeo.
As fotografias de Walther Ishikawa estão licenciadas sob uma Licença Creative Commons. As demais fotos
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