Coloração e genética desta curiosa variedade de Ampúlária
Artigo publicado em 02/02/2016, última edição em 22/07/2022
Exemplos da variedade Vermelho-Tomate, fotos de Aline Bernal Stefani. Note com a cor desaparece com a erosão da concha.
As Misteriosas Ampulárias "Tomate"
Existe uma curiosa variedade de cor da Ampulária comum (Pomacea diffusa) que é disponível no comércio há muitos anos, no exterior, em especial entre aquaristas da França. Possui uma concha avermelhada, podendo tender discretamente ao cor-de-abóbora, eventualmente mais escuro com um tom cor-de-tijolo. Não possui faixas, e seu corpo é claro, semelhante à variedade dourada comum. Na França é chamada de "Tomato", e quando começou a ser disponível no Brasil, as lojas a batizaram de "Vermelha". Para distingui-la da outra variedade de cor vermelha, optamos por chamá-la de "Tomate". Recentemente (2022) surgiram relatos também em criações norte-americanas.
Ampulária Vermelho-Tomate, exemplar gentilmente cedido pelo aquarista Rildo Melo. Note a variação de cor em comparação com o primeiro exemplar. Este caramujo possui a porção mais nova da sua concha com crescimento mais irregular, menos pigmentada, possivelmente por ter um periostraco mais fino e/ou malformado. Note também a variação na pigmentação, mais intensa nas porções mais antigas da concha, e as tênues faixas transversais com cor mais intensa.
Imagem em close da mesma concha, mostrando os focos de erosão, com perda da pigmentação.
Sabe-se que o que determina a coloração das conchas das Ampulárias são pigmentos incrustados nas camadas minerais da sua concha. Sobre a porção mineral, existe uma fina camada proteinácea chamada de periostraco, que contribui muito pouco na coloração. Veja um artigo sobre experimentos com dissolução seletiva das suas conchas aqui, feitas para comprovar a localização destes pigmentos. Esta regra vale também para a outra forma Vermelha de Ampulária, os pigmentos que determinam a cor vermelha se localizam na camada mineral da concha. O curioso é que a variedade Tomate é a única onde isto não ocorre, o pigmento avermelhado está localizado na camada mais superficial da concha, no periostraco. Por este motivo, o animal pode perder sua coloração quando há erosão do periostraco, ou quando o periostraco não se forma adequadamente. E pelo mesmo motivo, as conchas têm um aspecto como se tivessem sido pintadas com uma tinta. Realizamos um experimento similar com uma concha Tomate, para comprovar que o pigmento está no periostraco. Abaixo, as duas conchas usadas no experimento, uma Pomacea diffusa Tomate e uma Pomacea haustrum:
As duas conchas que serão usadas na experiência, a Pomacea diffusa Vermelho-Tomate, e uma Pomacea haustrum coletada em Recife, PE.
Foi retirado um fragmento de cada concha, e mergulhado em Hipoclorito de Sódio (água sanitária). Com isto, há dissolução da porção proteinácea do periostraco, mas mantendo a porção mineral íntegra:
Os dois fragmentos das conchas que serão usados na experiência.
Os dois fragmentos imediatamente após a imersão em Hipoclorito de Sódio, note como o periostraco da Tomate se desprende rapidamente.
Uma hora de imersão, com a dissolução completa do periostraco. Curiosamente, o periostraco da P. haustrum se dissolveu sem deixar vestígios. E o pigmento da Tomate continuou presente, destacado da concha, como um frágil filme avermelhado boiando na solução.
Os dois fragmentos após o tratamento com Hipoclorito de Sódio, sem o periostraco. Note como a concha da Tomate continua amarelada, mostrando que este pigmento se localiza na porção mineral. A concha da P. haustrum ficou com uma cor mais clara e desbotada, sem o periostraco de cor levemente acastanhada.
O fragmento de conchas da Tomate antes e após o experimento. Novamente, note a cor amarelada, mostrando que por baixo da cor avermelhada, existe uma Ampulária dourada.
Com este experimento, confirmou-se que o pigmento vermelho da variedade Tomate se localiza no periostraco. E novamente foi documentado que nas outras variedades, o pigmento escuro (como nas faixas) se localiza na porção mineral. Abaixo, um experimento complementar, para novamente confirmar que o pigmento vermelho dos Tomates se localiza no periostraco. O restante das duas conchas foi mergulhado em uma solução ácida. O objetivo é dissolver somente a porção mineral, mantendo o periostraco íntegro:
As duas conchas remanescentes que serão usadas na segunda experiência, já imersas em solução ácida.
As duas conchas após alguns dias, ainda sem dissolução mineral completa. Fragmentos de concha ainda são visíveis em ambas.
Fotos do periostraco da Pomacea diffusa Vermelho-Tomate, mostrando a persistência da cor avermelhada, confirmando novamente a localização do pigmento avermelhado.
Um outro achado bastante interessante, inusitado e fortuito, foi visto no momento em que se removeu o fragmento da concha do Tomate. Lembrando que as conchas de gastrópodes crescem de dentro para fora, as porções mais antigas das conchas são incorporadas na concha em crescimento. A região mais apical é a mais antiga, e os giros menores e mais jovens são recobertos pelos giros maiores e mais recentes da concha. Com a retirada do fragmento, foi possível observar os giros mais antigos da concha, notando-se que eles eram também vermelhos. Isto é importante porque confirma que estas conchas não foram artificialmente pintadas (existem conchas pintadas manualmente à venda em lojas).
Concha da Pomacea diffusa Vermelho-Tomate, após remoção do fragmento que será usada na primeira parte do experimento. Note o interior da concha, com os giros mais antigos também com cor avermelhada.
Outras imagens mostrando o interior da concha, com os giros mais
antigos de cor avermelhada. Com o tempo, a superfície em contato com o manto é revestida de novo material mineral (inductura), por isso o aspecto mais esbranquiçado.
Outro aspecto interessante é que muitas vezes a cor da concha desta variedade não é homogênea, em muitos indivíduos a cor passa a ser progressivamente menos intensa, ou a cor vermelha desaparece subitamente. Isto pode ser percebido na concha acima, com cor mais forte nas regiões apicais, e praticamente ausência de cor próximo à abertura. Veja outros exemplos interessantes abaixo:
Pomacea diffusa "Tomate" com
mudança gradativa na sua coloração, a última foto mostra o animal mais
velho. Curiosamente, a prole deste caramujo mostrou-se toda de cor
dourada (um bebê é visível na última imagem). Fotos de Aline Aparecida
Santos.
Duas ampulárias "Tomate", mostrando perda gradativa da sua coloração, exemplares norte-americanos da mesma prole. Fotos cortesia de Leah Daniell Cobb.
Abaixo, algumas fotos da Ampulária que foi utilizada nos experimentos, em um aquário, quando estava viva. A última foto é a mais recente, note como a porção nova da concha, próximo à abertura, praticamente não possui a pigmentação vermelha. O fato do pigmento estar localizado no periostraco explica a ausência de cor na porção da concha formada quando o animal está doente ou muito velho. Porém, não é claro porque alguns caramujos em perfeitas condições de saúde passam a não expressar a cor vermelha. Possivelmente trata-se de algum fator ambiental, como alimentação ou algum parâmetro físico-químico da água, ainda desconhecido.
Ampulária
Vermelho-Tomate, o mesmo exemplar usado nas experiências de dissolução. A última foto é mais recente, note a ausência do pigmento vermelho na porção mais nova da concha. Fotos cedidas por Rildo Melo.
Outro exemplo de Ampulária
Vermelho-Tomate, com perda da coloração nas porções mais novas da concha. Fotos cedidas por Cláudio Moreira.
Nas fotos abaixo, outro exemplar Vermelho-Tomate, este animal mostra claros sinais de que foi criado em más condições, com a concha nova próximo da abertura malformada, erodida e sem pigmentação. O exemplar foi adquirido em uma loja nestas condições, e aparentemente está se recuperando.
Outro exemplar de Ampulária "Tomate" no aquário, juntamente com outras variedades de cor da Pomacea diffusa. Este exemplar mostra a concha deformada e erodida junto à abertura (já foi adquirida nestas condições). Fotos cedidas por Leonardo Carvalho.
Ampulária "Tomate" fotografada fora d´água, em luz natural. Esta imagem mostra bem a intensa cor na concha. Foto de Natália Aratanha.
Vale lembrar também, que na outra variedade Vermelha de Ampulária, além da cor se localizar na camada mineral da concha, praticamente todas apresentam as faixas longitudinais espirais de cor mais escura. E a cor vermelha é dominante sobre a dourada, segue um esquema mostrando a genética desta variedade, em um suposto cruzamento com a dourada comum (letra "P" para pigmento do corpo, letra "A" para pigmento amarelo da concha, letra "E" para pigmento escuro da concha).
Dois exemplos da outra variedade Vermelha, fotos de Stijn Ghesquiere e Stephanie Maks.
Outro fato curioso é a genética desta cor Tomate. Por enquanto, só há documentação de cruzamentos desta variedade com a dourada comum. Em todos os casos, notou-se que nenhum filhote expressou a cor vermelha. A não ser que a cor vermelha necessite de algum gatilho ambiental para ser expressa (o que é uma possibilidade, como comentamos acima), isto mostra que a herança desta variedade Vermelho-Tomate não é dominante, como a variedade Vermelha comum. Supondo-se que o tipo de herança seja Mendeliana simples, uma possibilidade é que o vermelho no periostraco seja recessivo ao invés de dominante. Abaixo algumas fotos de filhotes, e um suposto esquema de hereditariedade, novamente lembrando que são suposições, por ora. Colegas aquaristas estão criando filhotes F1 desta variedade de cor (todas com fenótipo dourado), no futuro serão cruzadas entre si, para se checar a genética (letra "P" para pigmento do corpo, letra "A" para pigmento amarelo da concha, letra "E" para pigmento escuro da concha, letra "V" para pigmento vermelho do periostraco).
Desova de Ampulária
Vermelho-Tomate, vídeo de Leandro Crespo.
Filhotes F1 de Ampulária
Vermelho-Tomate, cruzamento com a variedade Dourada. Alguns mostram um duvidoso pigmento acastanhado. Fotos cedidas por Rildo Melo.
Este artigo só foi possível com a colaboração de diversos colegas aquaristas, aos quais somos muito gratos. Agradecimentos especiais a Rildo Melo, que nos cedeu a concha de um exemplar desta cor, além de fotos e valiosas informações. Também colaboraram no artigo Aline Bernal Stefani, Aline Aparecida Santos, Leonardo Carvalho, Leandro Crespo, Cláudio Moreira, Natália Aratanha, Stijn Ghesquiere (EUA), Stephanie Maks (EUA) e Leah Daniell Cobb (EUA).
As fotografias
de Walther Ishikawa e Stijn Ghesquiere estão licenciadas sob
uma Licença Creative Commons. As demais fotos têm seu "copyright" pertencendo aos
respectivos autores.