Algas Coralinas de Água Doce
No início de 2016 fomos brindados com uma interessante descoberta,
o encontro da primeira alga coralina em um habitat de água doce, em um rio da
Croácia. Algas vermelhas (filo Rhodophyta) são comuns em água doce, aquaristas
são bastante familiarizados com as infames algas “peteca” (como a Chantransia e Audouinella). Porém, as algas vermelhas coralinas (subclasse Corallinophycidae)
eram consideradas habitantes exclusivas de águas marinhas. São bem conhecidas
dos aquaristas que possuem reefs marinhos,
representam um importante componente dos recifes de corais, contribuindo nestes
ecossistemas na deposição de carbonato de cálcio como bio-construtores. Embora
algumas poucas espécies tenham sido encontradas em ambientes de água salobra,
um representante verdadeiramente continental nunca tinha sido descoberto, nem
como registro fóssil nem como espécie extante.
Obviamente algas não são
animais, pode causar estranheza um artigo sobre algas no nosso portal. Mas as
coloridas algas coralinas são um fascinante componente da biota de recifes de
corais (e aquários reefs), juntamente
com a grande variedade de invertebrados sésseis. Desta forma, achamos
interessante abordar esta curiosa descoberta no nosso site, especialmente
porque parece que estes seres já estão presentes em muitos dos nossos aquários
de água doce!
Rio Cetina, Croácia, fotos da localidade-tipo do Pneophyllum cetinaensis. A segunda imagem mostra um leito somreado e raso do rio, com a alga recobrindo de forma extensa as estruturas rígidas do substrato, como rochas (seta vermelha) e raízes (seta branca). Imagem extraída de Žuljević
A, et al. Sci. Rep. 6, 19642 (2016) (Licença Creative Commons).
A nova espécie dulcícola foi descoberta no Rio Cetina, um rio
cárstico na costa adriática da Croácia, onde parece ser endêmico. Análises
morfológicas e moleculares identificaram a espécie como sendo do gênero marinho
Pneophyllum, com ampla distribuição,
com 18 espécies aceitas. Foi batizada de Pneophyllum
cetinaensis, em homenagem ao rio onde foi encontrado.
Holotipo do Pneophyllum cetinaensis.
Imagem extraída de
Žuljević
A, et al. Sci. Rep. 6, 19642 (2016) (Licença Creative Commons).
Para um crescimento adequado e calcificação das suas paredes
celulares, algas coralinas precisam de carbonato de cálcio e magnésio, que são
presentes em concentração suficiente na água do mar. O Rio Cetina corre sobre
um substrato de rochas calcárias, determinando uma água alcalina e dura (pH de
8.1, 200 mg CaCO₃/l), com
elevado teor de íons dissolvidos destas duas substâncias. A alta condutividade
destas águas facilita a ormorregulação, devendo ter tido um papel importante na
transição evolutiva desta espécie para água doce. A alga foi encontrada em
quase toda a extensão do rio, mas não no seu estuário, indicando tratar-se de
uma espécie verdadeiramente de água doce. É mais comum em regiões sombreadas
das rochas, raro em locais expostos diretamente ao sol.
Pneophyllum cetinaensis no Rio Cetina, Croácia, recobrindo de forma extensa as rochas no leito do rio. Numerosos caramujos podem ser vistos nas fotos. Imagens extraídas de
Žuljević
A, et al. Sci. Rep. 6, 19642 (2016) (Licença Creative Commons).
Os autores observaram outro fato curioso, provavelmente os
caramujos (bastante numerosos no local, especialmente a “Neritina” Theodoxus fluviatilis) possuem um papel
adicional na biologia destas algas. Assim como outras algas vermelhas, P. cetinaensis não produz células móveis
em nenhuma etapa da sua vida, e sempre corre o risco de ser levado pela
correnteza do rio. Mais de 95% dos caramujos encontrados no local tinham suas
conchas incrustadas por estas algas, frequentemente com estruturas
reprodutoras, possivelmente agindo como vetores de dispersão a montante.
Caramujo Theodoxus fluviatilis recoberto por Pneophyllum cetinaensis, notando-se numerosas estruturas reprodutoras (seta). Imagens extraídas de
Žuljević
A, et al. Sci. Rep. 6, 19642 (2016) (Licença Creative Commons).
Seu aspecto lembra as algas coralinas marinhas, formam
crostas planas e espessas sobre substratos sólidos, muitas vezes com múltiplas
camadas, formando anéis concêntricos, lembrando vagamente líquens. Cor rosa ou
violeta fosca, as margens são mais claras, rosadas ou esbranquiçadas.
Pneophyllum cetinaensis, note a aspecto plano e lamelado, formando uma crosta irregular sobre rochas. Imagem extraída de
Žuljević
A, et al. Sci. Rep. 6, 19642 (2016) (Licença Creative Commons).
Após a publicação deste artigo, muitos fóruns de aquarismo
mencionaram que existem diversos reportes de misteriosas algas planas,
geralmente de cor avermelhada, muitas vezes formando anéis concêntricos,
surgindo em aquários domésticos de água doce. São mais comuns em aquários de
Ciclídeos Africanos, com água dura e alcalina, condições semelhantes às vistas
no rio croata. Trata-se provavelmente de algas coralinas, como muitas vezes já aconteceram
com outros organismos, estas algas já vinham sendo relatadas em aquários, mesmo
antes da identificação formal científica. Há registros inclusive entre
aquaristas brasileiros, como os das fotos abaixo. Vale lembrar que as Rhodophyta têm a capacidade de fazer variar a quantidade relativa de cada tipo de pigmento fotossintético, dependendo das condições de luz em que se encontram, o que poderia explicar a variação de cores das algas encontradas em aquários.
Provável alga coralina que surgiu em um aquário de Ciclídeos Africanos em 2011. Fotos cedidas por Marne Campos.
Provável alga coralina que surgiu em um aquário comunitário. Fotos cedidas por João Henrique Gonçalves.
Provável alga coralina que surgiu em um aquário de camarões anões, em Ribeirão Preto, SP. Fotos cortesia de Rubens Arruda.
Provável alga coralina, que surgiu em um aquário de Ciclídeos Africanos em 2016 (EUA). Os Mbunas se alimentavam destas algas. A última imagem mostra a saída do filtro. Fotos cedidas por Mark Strimaran (Fórum Monster Fish Keepers).
Bibliografia:
- Žuljević A, Kaleb S, Peña V,
Despalatović M, Cvitković I, De Clerck O, Le Gall L, Falace A, Vita F,
Braga JC, Antolić B. First freshwater coralline alga and the role of local
features in a major biome transition. Sci. Rep. 6, 19642; doi: 10.1038/srep19642 (2016).
- Bicudo
CEM, Menezes M. Gêneros de Algas de Águas Continentais do Brasil - chave
para identificação e descrições. 2ª
ed. São Carlos: Rima Editora. 2006.502 p.
Agradecimentos especiais a Marne Campos, administrador do portal Aquarismo
OnLine (AqOL),
aos aquaristas brasileiros João Henrique Gonçalves e Rubens Arruda, e ao aquarista norte-americano Mark Strimaran do fórum MonsterFishKeepers pela cessão das
fotos para o artigo. As imagens do artigo Zuljevic
A, et al. Sci Rep. 6, 19642 (2016) estão
licenciadas sob uma Licença Creative Commons. O artigo original pode ser visto aqui.
Artigo publicado em 08/05/2016, última atualização em 15/07/2023.