Artigo inicialmente publicado em 17/05/2012, última edição em 27/04/2024
Erosão na Concha de Moluscos - Parte 1
Introdução
Um
dos problemas mais comuns que afetam nossos caramujos é a degeneração das
conchas com erosão e formação de buracos. É uma condição que pode ser grave,
potencialmente letal, por expor os tecidos moles vulneráveis do animal.
Geralmente
é atribuída à manutenção de caramujos em águas ácidas e moles. Certamente isto
influi, e bastante. Mas o problema é um pouco mais complexo, outros fatores
além dos parâmetros da água do aquário contribuem para a erosão, e sua compreensão
é fundamental para a prevenção e tratamento desta condição.
O que são e como são formadas as Conchas
As
conchas dos moluscos são diferentes dos esqueletos dos vertebrados em diversos
aspectos. Estas conchas, ao contrário da maioria das estruturas animais, não
são feitas de células. Somente como comparação, o osso humano é um tecido vivo,
ricamente vascularizado e inervado, com diferentes células na sua composição.
Algumas destas células possuem material mineral depositado, o que confere seu
aspecto sólido, mas 33% do peso de um osso são compostos de proteína, e 66% de
mineral (hidroxiapatita, um mineral constituído basicamente de fosfato de
cálcio). Por este motivo, um osso humano cresce e se remodela continuamente, e
pode também ser reparado no caso de uma fratura.
As conchas são diferentes. É uma estrutura sem vida,
um simples depósito cerâmico que envolve e protege o corpo macio do animal. Sua
composição é essencialmente de carbonato de cálcio, somente com uma pequena
quantidade de proteína (0,1 a 5%). Por este motivo, as conchas têm uma
capacidade de remodelamento muito limitada. Ao contrário, por exemplo, do nosso
esqueleto, as conchas presentes na infância dos moluscos permanecem
grosseiramente com o mesmo formato, incorporadas na concha em crescimento,
coberta internamente por sucessivas camadas de mineral depositado. Olhando com
cuidado a porção mais apical de um caramujo, ou a porção umbral de um bivalve,
é possível enxergar uma versão em miniatura da concha adulta. GIF animado mostrando o
crescimento da concha de um gastrópode. Veja como a porção apical da concha foi formada na juventude do animal, sendo incorporada à sua estrutura, à medida que a concha cresce. Imagem cedida por Stijn Ghesquiere.
Concha de Pomacea diffusa
seccionada, mostrando a sua estrutura interna. Foto de Stijn
Ghesquiere.
O
manto do molusco é um tecido que recobre uma extensa área da concha por dentro.
É este tecido que produz a concha, secretando inicialmente um polímero
glicoprotéico chamado perlucina (composta de proteínas e quitina), que irá
induzir a precipitação extracelular de material mineral sobre a sua estrutura, atuando como
matriz, e formando a concha. Estes polímeros também funcionam como um vigamento, guiando a formação das complexas estruturas cristalinas minerais. Desta forma, as conchas crescem somente de fora
para dentro, e nas suas margens. A superfície externa da concha não cresce, e
também não possui mecanismos de reparo no caso de uma agressão. Uma concha
quebrada só pode ser reparada na sua superfície interna, que está em contato
com o tecido vivo do animal.
GIF animado mostrando o crescimento da concha de um molusco. Note como o periostraco e ostraco não são renovados, permanecendo o mesmo material do momento da sua formação. Note também como as camadas do hipostraco são depositadas uma sobre a outra.
Composição das Conchas - Carbonatos biogênicos
Além
dos moluscos, diversos outros organismos utilizam o Carbonato de Cálcio como “material
de construção” para aumentar a resistência de estruturas biológicas, desde o
exoesqueleto de estrelas-do-mar, algas calcárias e cascas de ovos de aves. A
principal exceção é o osso de vertebrados, que por um motivo não muito claro, é
composto de Fosfato de Cálcio - Ca3(PO4)2. O mesmo material é usado em conchas de braquiópodes Inarticulata.
O
Carbonato de Cálcio, cuja fórmula química é CaCO3, ocorre na forma
de polimorfos, ou seja, minerais distintos, com a mesma composição
elementar química, mas com distintas estruturas cristalinas. Algo semelhante ao
que ocorre com Grafite/Diamante, ambos compostos somente de Carbono, mas
arranjos cristalinos distintos, e propriedades físicas radicalmente diferentes. Nas conchas de moluscos, há três polimorfos, calcita, aragonita e vaterita. Existem outros três polimorfos (protodolomita, monohidrocalcita e ikaíta), mas não ocorrem nas conchas.
O
primeiro polimorfo é a Calcita, com arranjo cristalino romboedral, a
forma mais estável e pouco solúvel das três. Muitas vezes a Calcita mostra
impurezas de Magnésio incorporadas, podendo ser classificada de acordo com a
quantidade de Mg, em LMC ou HMC (“low” ou “high-magnesium calcite”). É o
polimorfo mais comumente encontrado em seres vivos, exceto nos moluscos. É o
principal constituinte do exoesqueleto de corais, equinodermas, esponjas,
crustáceos, cascas de ovos de aves e conchas de braquiópodes Articulata.
O
segundo é a Aragonita,
seu arranjo cristalino é ortorrômbico, ainda é uma forma estável, mas já mostra
uma solubilidade maior do que a Calcita (35% maior, em água salgada). Tende a
formar cristais aciculares, formando nano-estruturas entrelaçadas, com maior
resistência em relação à Calcita. Talvez por este motivo, é a forma mais
comumente encontrada na concha de moluscos, estando presente também na casca de
ovos de répteis. Dentre os moluscos, a maioria utiliza exclusivamente
Aragonita, mas alguns usam uma combinação de Calcita e Aragonita, e uns poucos
(como as Ostras) utilizam quase exclusivamente Calcita. A Calcita também está
presente durante o processo de reparo de conchas danificadas, por exemplo, em Pomaceas. Parece haver uma tendência a haver um maior componente de Calcita quando o reparo ocorre em temperaturas mais baixas. Curiosamente, existem matrizes orgânicas distintas secretadas pelo animal, que induzem a precipitação na forma de Aragonita ou Calcita.
A
última é a Vaterita,
com cristais hexagonais, instável e solúvel, se converte em Calcita ou
Aragonita em contato com a água. Raramente é encontrado como material biológico,
mas pode estar presente no processo inicial de formação da camada prismática,
como próximo à borda das conchas de Biomphalarias,
ou durante o reparo de conchas danificadas. Há também relatos de Corbiculas com conchas deformadas na Inglaterra, com hipostraco anormalmente espessado e composto por Valerita, de causa desconhecida.
Um
último material que talvez seja interessante comentar é a Dolomita, pelo seu extenso uso
em aquarismo. Este não é um material biológico, mas sim geológico. Quando
Calcitas possuem uma quantidade muito grande de Magnésio incorporada (tão
grande quanto Cálcio), são consideradas Dolomitas – CaMg(CO3)2. Curiosamente, a Dolomita é muito menos solúvel em água do que a Calcita (o componente de CaCO3 tem solubilidade de somente 4 ppm quando incorporada na Dolomita, e de 20 ppm na Calcita, a 25oC).
Ilustração mostrando as três camadas da concha dos moluscos, com os diferentes arranjos cristalinos do ostraco e hipostraco.
Estrutura das Conchas
As
conchas dos moluscos são constituídas por três camadas principais:
A
camada mais externa, em contato com o ambiente, é o Periostraco, também chamado de
Cutícula ou Periósteo proteináceo. É uma fina membrana geralmente de cor escura, feita de um material orgânico flexível (concholina),
parecido com uma membrana plástica. Semelhante a uma camada de verniz, o
Periostraco isola a porção mineral da concha do meio ambiente, impedindo
inclusive o contato com a água. Porém, sua resistência mecânica não é muito
grande, podendo ser rompida se houver atrito ou contusão na superfície da
concha. Uma função importante do Periostraco é na borda da concha em
crescimento, onde ele cria um bolsão isolado do ambiente dentro do qual será
possível a precipitação e cristalização de material mineral (espaço extra-palial). Está presente em quase todas as conchas de moluscos, a exceção mais conhecida é o Cauri (família Cypraeidae), cuja superfície externa da concha é totalmente coberta pelo manto em animais vivos. Alguns raros moluscos podem ter um componente calcificado no periostraco. Nas náiades (pelo menos em Unionidae) esta camada é duplicada, explicando o periostraco espesso e de aspecto corrugado.
A
camada média é o Ostraco, chamada também de Camada Prismática, densa e
calcificada, geralmente de cor esbranquiçada. Nos modelos mais simples (como conchas nácreas), os cristais desta camada estão
arranjados na forma de pequenas colunas perpendiculares à superfície da concha.
Em conchas mais espessas e com arquiteturas mais complexas (como os Strombus), esta camada possui múltiplas sub-camadas, com arranjos dispostos a otimizar tanto a resistência direta da concha, quanto a dissipação lateral da energia aplicada. A forma cristalina do nacre é 1000 vezes mais resistente do que a aragonita não-cristalina. Esta camada é produzida pelas células das margens do manto, as mesmas que produzem o
Periostraco, e é responsável pelo crescimento nas bordas da concha. Desta
forma, próximo às bordas, esta é a camada mais espessa, e que confere
resistência mecânica à concha. Nas regiões mais centrais e antigas da concha, a
camada que predomina é o Hipostraco.
A
camada mais interna é o Hipostraco, Camada perolada ou Nacre, que está em
contato com o manto do animal. Também é mineral e calcificada, mas tem um
aspecto lamelado, nácreo e perolado. Os cristais desta camada estão arranjados
paralelamente à superfície da concha, na forma de placas sobrepostas,
semelhante a telhas. É produzida pelas células da superfície do manto dorsal em contato
com a concha, e é responsável pelo crescimento em espessura da concha. As pérolas são formadas nesta região.
A
iridescência do nacre depende bastante do seu conteúdo orgânico, em conchas de
aragonita ricas em material orgânico há um aspecto mais lamelado dos cristais
de aragonita, devido à interposição de material orgânico, funcionando como uma
grade de difração decompondo a luz visível. Isto não ocorre em conchas de
aragonita pobres em matéria orgânica, que adquirem um aspecto mais porcelanoso.
O papel deste componente orgânico como proteção à dissolução é ambíguo: por um
lado, há inicialmente uma maior resistência à dissolução pelo maior isolamento
da estrutura cristalina mineral ao solvente (de forma semelhante ao
Periostraco), mas a sua presença pode também facilitar a dissolução em algumas
condições, como em ambientes ricos em micróbios. Alguns trabalhos mostram uma dissolução muito mais rápida da concha em Corbiculídeos (que não possuem conchiolina) após a remoção do periostraco. Em meio a este material orgânico, também há o que é chamado de "água estrutural", o que explica a fragilização de conchas desidratadas em coleções.
Imagem de microscopia eletrônica de varredura da concha de um Mexilhão Dourado (Limnoperna fortunei),
mostrando o ostraco, com cristais dispostos em colunas, e o hipostraco,
com cristais dispostos em camadas. A imagem foi produzida no Centro de
Microscopia da UFMG, a colorização foi feita pelo físico Wesller
Schmidt, técnico responsável pelo microscópio FIB. Imagem gentilmente
cedida pelo Centro de Bioengenharia de Espécies Bioinvasoras de
Hidrelétricas (CBEIH).
Fissuras e outros problemas relacionados ao
crescimento da concha
Existem muitas malformações descritas relacionadas ao desenvolvimento da concha das ampulárias, as mais frequentes e importantes para nós aquaristas são as fissuras e fendas. Na realidade, são outro tipo de problema de saúde que pode
acometer os caramujos, sem relação direta com a erosão. Porém, por ser uma condição
comum, também relacionada à estrutura e formação da concha, sugerimos a leitura do artigo complementar aqui, Fissuras e Fendas nas Conchas de Ampulárias.
Exemplos de Ampulárias com fissuras e defeitos no crescimento da concha. Nos casos mais graves, há extensa exposição do tecido do animal, levando à morte. Imagens cedidas pela aquarista norte-americana Stephanie Maks.
Pomacea diffusa com espira escalariforme, foto cortesia de Stacy Berberich.
Como os moluscos reparam conchas danificadas?
O animal só consegue reparar conchas danificadas na região onde ela é internamente revestida pelo manto, que é o órgão que produz a concha. Em situações mais drásticas, como perfurações mais apicais (por exemplo, erosão com amputação apical), o molusco consegue depositar material mineral na superfície dos órgãos expostos, mas de uma forma mais paliativa, lenta e imperfeita. Fraturas na porção média da concha podem ser fatais, seu tratamento será abordado mais adiante no texto.
Não há trabalhos científicos com Ampulárias, mas há muitos estudos com gastrópodes terrestres e marinhos, como o Strombus gigas e Helix. A regeneração da concha ocorre de forma muito parecida com a formação da concha, eventualmente com variações na composição orgânica ou do polimorfo mineral, especialmente em lesões mais distantes da abertura da concha. Porém, não há formação de novo periostraco, a regeneração se inicia com uma membrana orgânica de outra natureza.
Trabalhos mostram que a oclusão da descontinuidade da concha com algum material (como poliestireno) acelera o processo de regeneração, porque reduz a perda de nutrientes. Havendo oclusão, o processo de reparo se inicia imediatamente após a injúria, com deposição de uma membrana incolor de matriz orgânica, e depois de alguns dias, agregados de microcristais minerais aciculares. A primeira camada mineral depositada é de Aragonita, com arranjo cristalino randômico. Nos Strombus, demora cerca de uma semana para surgirem as complexas arquiteturas lamelares na concha regenerada. Se a falha na concha permanece aberta, a primeira etapa é mais demorada, e há a presença de colágeno na membrana orgânica.
Ampulárias têm o péssimo hábito de saírem da água, especialmente fêmeas reprodutoras. É importante manter o aquário bem tampado para evitar fugas. Acidentes são comuns, muitas vezes com fraturas da concha. Foto de André Albuquerque.
Duas
fotos mostrando a rápida recuperação de uma concha fraturada de
Ampulária. O intervalo entre as fotos é de cinco dias. Imagens
gentilmente cedidas pela aquarista Terri Bryant.
Pomacea maculata fotografada em Camden County, Georgia (EUA). Extensa fratura e deformidade da concha, reparada pelo animal. Fotos de Bill Frank.
Pomacea sp., fotografada em Santarém, PA, sequela de uma fratura consolidada. Foto cortesia de Nelson Wisnik.
Por que há erosão nas conchas?
Depois
de toda esta longa introdução teórica, chegamos finalmente à erosão. Qual é o
mecanismo da erosão nas conchas? Por qual motivo ela ocorre?
A
erosão da concha é a dissolução do material mineral da concha do animal,
formando buracos, e expondo os seus tecidos moles. O Carbonato de Cálcio é um
sal hidrossolúvel, embora pareça rígido e resistente, em contato com a água ele
se dissolve, em velocidades variadas.
É um processo gradual,
inicialmente podem ser visíveis diminutas falhas no Periostraco. Localmente
isto evolui para erosões superficiais semelhantes a um “roído de traça”. Estas
erosões se aprofundam cada vez mais, até se tornarem buracos na concha, expondo
os tecidos do caramujo. Dependendo do local da concha que ocorra a deterioração
(por exemplo, restrito à região apical), pode ser bem tolerado. Mas se houver
grande exposição do manto e outros tecidos nobres, pode ser fatal. Havendo exposição, o caramujo tem a capacidade
de formar uma camada calcificada recobrindo este tecido, e protegendo-o. Mas
nem sempre isto pode ser feito numa velocidade rápida o suficiente.
Algumas
funções fisiológicas do animal dependem da sustentação mecânica da concha
sólida, dependendo onde e quanta erosão ocorra, pode haver dificuldade em
manter a cavidade do manto expandida, com colapso pulmonar/branquial. Isto é
ainda mais crítico em caramujos pulmonados, como Ampulárias, Planorbídeos e Physa. Além da erosão em si, todo este
processo leva a uma menor resistência da concha, predispondo o animal a
acidentes, e facilitando a quebra da concha por predadores. O próprio tecido
mole exposto é vulnerável, um prato cheio para qualquer predador, além de ser
uma porta de entrada para germes.
Três
fatores interferem diretamente no processo de erosão:
- 1 - A integridade do Periostraco.
- 2 - A composição química da água.
É importante compreender o papel de cada um destes fatores.
Só assim será possível entender porque alguns caramujos mantidos em águas bem
alcalinas mostram sinais de erosão, e porque alguns caramujos conseguem viver
bem nas águas negras e ácidas dos rios amazônicos.
GIF animado mostrando as etapas da erosão da concha de moluscos.
Veja a segunda parte do artigo
aqui