Das cerca de 100 espécies de caranguejos chama-marés
que existem no mundo, dez ocorrem no Brasil. Algumas referências fazem menção a
outras espécies (como o Uca salsisitus), mas a relação oficial de espécies
válidas é esta:
- Gênero Uca (subgênero Acanthoplax):
- - Uca maracoani (Latreille, 1802-1803)
- Gênero Leptuca:
- - Leptuca thayeri
(Rathbun, 1900)
- Gênero Minuca:
- - Minuca vocator (Herbst, 1804)
- - Minuca panema (Coelho, 1972)
- - Minuca mordax (Smith, 1870)
- - Minuca rapax (Smith, 1870)
- - Minuca victoriana (von Hagen, 1987)
- Gênero Leptuca:
- - Leptuca uruguayensis (Nobili, 1901)
- - Leptuca cumulanta (Crane, 1943)
- - Leptuca leptodactyla (Rathbun, 1898)
O Leptuca thayeri é um caso bem interessante, inicialmente era classificado em um subgênero próprio, Planuca. Análises morfológicas e filogenéticas invalidaram este subgênero, inserindo-o no subgênero Minuca, com o qual guarda muitas similaridades morfológicas. Mais recentemente (2015), análises moleculares mais finas situaram esta espécie no subgênero dos pequenos Leptuca, apesar de seu aspecto diferir bastante das demais espécies deste grupo. Em 2016 novas análises moleculares elevaram os subgêneros a categorias de gênero, deixando-se de ser classificado como Uca (Leptuca) thayeri, passando a Leptuca thayeri. Porém, esta espécie possui particularidades morfológicas e comportamentais tão marcantes que optamos por mantê-la à parte.
Algumas espécies são facilmente identificadas (como
o Uca maracoani), mas a diferenciação de outras é muito dificultada para
o não-especialista. Em especial, a diferenciação entre os Minuca é particularmente difícil.
Um último lembrete importante: A Chave de Identificação proposta adiante é uma adaptação feita pelo autor, baseado em diversos trabalhos, como o da Dra. Jocelyn Crane, Dr. Gustavo Augusto Schmidt de Melo, Dr. Luis Ernesto Arruda Bezerra e Dra. Setuko Masunari. No que ela difere das chaves propostas por estes autores? Chaves de identificação corriqueiramente usadas em zoologia precisam ser aplicáveis a exemplares conservados em coleções, ou seja, não podem se basear em cor, local de coleta, comportamento, etc. Precisa ser aplicável a machos e fêmeas, ou seja, não pode se valer (ao menos primariamente) em características somente de um sexo, como a garra do macho. A chave a seguir é uma adaptação feita para aquaristas/leigos, e (com o intuito de simplificação), focada principalmente em machos. A proposta de chave que mais se aproxima da nossa é o da Dra. Masunari. Havendo necessidade de uma identificação mais precisa, sugerimos a leitura das quatro chaves acadêmicas, cujas referências estão no final do texto.
Na natureza, muitas vezes podemos ver espécies
diferentes de caranguejos chama-marés co-habitando o mesmo manguezal, porém, uma
análise mais cuidadosa revela que na realidade estas diferentes espécies se
distribuem em nichos ambientais específicos, de acordo com características
locais de salinidade, substrato, etc. Desta forma, cada uma das espécies de chama-maré
se especializou num determinado tipo de ambiente, e o conhecimento destas
características é importante para a correta manutenção destes animais em
cativeiro. Por consequência, é fundamental a correta identificação da espécie
para se oferecer as melhores condições.
A Fronte
O elemento fundamental na identificação da espécie
de caranguejo chama-maré é a largura da sua fronte. Ela é a informação central
a partir do qual todas as chaves de identificação destes caranguejos partem.
Estes animais possuem olhos compostos na
extremidade de um pedúnculo, os quais são retráteis, se amoldando em fendas na
borda anterior do cefalotórax. As órbitas ocupam toda a borda anterior da
carapaça externamente à fronte. Desta forma, quanto mais larga a fronte, mais
curtos são os pedúnculos oculares.
A fronte é aquela “lingueta” de carapaça que se
estende anteriormente, entre a base dos olhos. Sua medida é realizada na sua
região basal, onde é mais larga, numa medida transversal (largura). Esta medida
é relacionada à largura total da borda anterior da carapaça, no plano das
fendas orbitárias.
Zoólogos realizam estas medidas diretamente nos
animais, usando um paquímetro. Se você possui um, poderá fazer uma medida
bastante precisa. Porém, muitos aquaristas não têm preparo para manipular
corretamente estes animais, dificultando bastante a mensuração direta. Neste
sentido, fotos podem auxiliar bastante. A melhor imagem pode ser obtida numa
visão intermediária frontal-superior, devendo-se tomar bastante cuidado com
foco, simetria, e distorções por perspectiva. Por questões de perspectiva, eu
pessoalmente acho mais preciso centralizar a imagem em uma das metades da carapaça,
e realizar a medida também em somente uma metade (veja fotos). Sei que há um
pequeno erro, porque a fronte se localiza em um plano um pouco mais anterior à
medida das distâncias fronto-orbitais, mas é desprezível.
Na minha opinião, a maior dificuldade nestas
medidas é saber onde medir a fronte. Deve-se realizar a medida na sua base, mas
em muitas espécies a transição desta base lateralmente com as órbitas é suave e
gradual. Muitas vezes é difícil saber quando “termina a fronte” lateralmente.
Uma medida realizada numa imagem mais superior (veja foto do Minuca vocator)
é mais precisa, mas os limites da fronte são mais difíceis de serem vistos
nesta posição.
Além da identificação em si, caracterizar a fronte
permite grosseiramente prever outros aspectos morfológicos e comportamentais
destes caranguejos. A Dra. Jocelyn Crane, em 1975, reuniu os caranguejos chama-maré
em dois grandes grupos, baseado no critério morfológico da distância entre os
pedúnculos oculares, além de padrões reprodutivos e utilização das tocas,
dividindo as espécies em “fronte estreita” e “fronte larga”. Mais adiante
(1987), Dr. Salmon introduziu um terceiro grupo intermediário, que chamou de
“fronte intermediária”.
A vasta maioria das espécies brasileiras de chama-marés pertence ao grupo
“fronte larga”. Somente uma espécie pertence ao grupo “fronte estreita” (U.
maracoani), e uma ao grupo “fronte intermediária” (L. thayeri).
As espécies de caranguejos chama-maré que
possuem “fronte larga” se acasalam no interior das tocas dos machos. Machos
destas espécies têm um comportamento de exibição e corte mais elaborados,
torna-se de coloração corpórea mais brilhante, cortejam, lutam, constroem
ornamentações nas tocas e defendem suas tocas ativamente durante o período
reprodutivo. As fêmeas dedicam-se pouco à defesa da toca, produzem grandes
posturas de ovos, os quais são incubados no interior da toca do macho. A
incubação pode durar aproximadamente duas semanas, e as fêmeas interrompem a
atividade alimentar.
Já nas espécies de “fronte estreita”, o
acasalamento ocorre após uma breve corte, e se dá, geralmente, na superfície.
As fêmeas destas espécies possuem coloração semelhante a dos machos e defendem
suas tocas de caranguejos intrusos de ambos os sexos. A cada ciclo semilunar,
estas fêmeas produzem pequenas massas de ovos que ficam cobertas pelo abdômen,
alimentam-se e mantém as demais atividades durante o período de incubação.
Identificação etapa 1 – fronte muito
estreita, identificando ou excluindo o Uca
maracoani
Como já exposto, o primeiro passo para a
identificação da espécie de chama-maré é a medida da largura da fronte.
Se a fronte for muito fina (cerca de 1/20 da
largura fronto-orbital), baseado somente neste fato, já é possível o
diagnóstico da espécie como sendo Uca maracoani, a única espécie
brasileira do gênero Uca.
Uca maracoani,
fronte. Veja a fronte extremamente fina, espatuliforme. Consequentemente os
pedúnculos oculares são bem longos. Foto de Walther Ishikawa.
Nos machos
desta espécie, a quela é bem característica, também com um aspecto único entre
as espécies destes caranguejos. É a maior espécie brasileira de
caranguejo-violinista (e a maior do mundo, em peso), sua carapaça pode atingir
4,3 cm de largura.
Identificação etapa 2 – fronte estreita,
identificando ou excluindo o Leptuca thayeri
Se a largura
da fronte estiver entre 1/5 e 1/6 da distância fronto-orbital, isto caracteriza
o Leptuca thayeri.
O seu contorno sinuoso é bastante típico, com uma fronte verticalizada, e com
discreto estreitamento na porção média.
Leptuca thayeri,
fronte. A fronte é fina, ainda com as bordas laterais verticais, e base sinuosa. Os
pedúnculos oculares são longos, mas em menor grau do que o Uca maracoani. Foto de Walther Ishikawa.
Para machos
adultos, o dedo
fixo da garra maior do macho é curvado para baixo, outro sinal que auxilia
bastante sua identificação. A carapaça bastante pubescente também chama a atenção desta espécie.
Machos de Uca maracoani (esquerda) e Leptuca thayeri (direita),
mostrando suas quelas maiores bem características. Os dedos são largos e achatados no Uca maracoani, parecendo lâminas de uma tesoura. O dedo fixo do Leptuca thayeri é curvado para baixo. Fotos de Walther Ishikawa.
Identificação etapa 3 – fronte
relativamente larga, restante do gênero Leptuca
Se
a largura da fronte medir entre 1/4 e 1/5 da distância fronto-orbital, as possibilidades
são as três demais espécies brasileiras do gênero Leptuca (antigo subgênero Celuca): Leptuca uruguayensis,
Leptuca cumulanta e Leptuca leptodactyla. Leptucas são pequenos caranguejos chama-marés coloridos com carapaça globosa e dedos da garra maior do macho longos, conferindo um aspecto em "fórceps".
As novas chaves do Dr. Bezerra e Dra. Masunari sugere o uso das estrias póstero-laterais da carapaça
para diferenciar os Minuca dos Leptuca (dois pares nos primeiros e um
par nos segundos), talvez seja a forma mais segura de diferenciá-los, mas é de
difícil visualização para o leigo, em animais vivos.
Leptuca uruguayensis,
fronte. A fronte é intermediária, mas mais fina do que as duas outras espécies de Leptuca. Foto de Fábio L. Ferreira.
Leptuca leptodactyla,
fronte. Foto de Rodrigo Valença Cruz.
Leptuca cumulanta,
fronte. Foto de Walther Ishikawa.
Todos
estes três Leptuca possuem uma carapaça
convexa, com aspecto semi-cilíndrico numa visão em perfil, diferente da
carapaça mais plana e em "escudo" dos Minuca.
Associado ao pequeno tamanho dos Leptuca,
talvez seja a forma mais simples do leigo identificar este grupo. Dentre as três espécies brasileiras, o L. cumulanta tem esta característica menos exacerbada, lembrando um pouco um Minuca.
A
chave do livro do Dr. Melo indica a fronte mais estreita para identificar o L. uruguayensis, separando-o das duas
outras espécies. Porém, outros autores mencionam que esta diferença não é tão
conspícua, e certamente é uma característica que dificilmente poderia ser usada
pelo leigo.
A
chave do Dr. Bezerra também propõe inicialmente identificar o L. uruguayensis, separando-o das duas
outras espécies. Mas se vale da presença de uma crista bilateral bem definida
na região anterior baixa do própodo da primeira perna ambulatória, em machos. Parece-me
um critério difícil de ser analisado pelo leigo.
Leptuca uruguayensis,
imagens mostrando o aspecto convexo e semi-cilíndrico da sua carapaça. Fotos de Hernán Chinellato.
Somente para comparação, fotos de Minuca rapax, mostrando o aspecto mais achatado e poligonal da sua carapaça, em "escudo". Fotos de Walther Ishikawa.
Talvez,
para o não-especialista, seja mais fácil tentar identificar inicialmente o L. cumulanta. Duas características permitem diferenciar esta espécie das outras duas: a primeira é a margem anterior da
carapaça nos machos, o Leptuca
cumulanta possui uma carapaça com
margem ântero-lateral relativamente longa, e separada da margem póstero-lateral
por ângulo bem distinto. Os dois outros Leptuca
possuem uma carapaça com margem ântero-lateral curta, continuando
indistintamente com a póstero-lateral.
Comparação das margens ântero-laterais das carapaças do Leptuca cumulanta, Leptuca uruguayensis e Leptuca leptodactyla,
machos, mostrando o aspecto longo e com ângulo demarcado em relação à
margem póstero-lateral somente na primeira espécie. Fotos de Fábio L.
Ferreira e Walther Ishikawa.
A segunda característica, mencionada nas novas chaves do Dr. Bezerra e Dra. Masunari, onde citam que a melhor forma de distinguir as três
espécies é pelo padrão de fusão dos somitos abdominais:
- L. uruguayensis: fusão do 4º ao 6º segmentos (ou mais raramente do 5º ao 6º segmentos).
- L. leptodactyla: fusão do 3º ao 6º segmentos (ou mais raramente do 4º ao 6º, ou 5º ao 6º segmentos).
- L.
cumulanta: sem fusão.
Note que há alguma variação entre as duas outras espécies, mas a ausência de fusão é uma característica conspícua nesta espécie. Se
for possível uma análise da região ventral do caranguejo, certamente é um
parâmetro bastante útil. Me parece também ser bastante interessante na
identificação de fêmeas.
Imagem ventral de Leptuca cumulanta, Leptuca uruguayensis e Leptuca leptodactyla,
machos, mostrando o padrão de fusão dos segmentos abdominais. Fotos de Walther Ishikawa.
Outro detalhe que vale a pena mencionar é a mudança reprodutiva na sua coloração. O L. cumulanta é a única das três espécies brasileiras de Leptuca onde não há mudança na coloração. Ou seja, se for um animal cujo macho apresenta uma mudança
reprodutiva na coloração (“alvejamento”), não se trata desta espécie.
Uma dica também é saber
onde o animal foi coletado, já que a
distribuição geográfica desta espécie é bem peculiar. Embora se sobreponha à do L. leptodactyla, praticamente não há sobreposição com a do L. uruguayensis (maiores informações na primeira
parte do artigo).
Leptuca leptodactyla,
machos mostrando "alvejamento" ("whitening"), uma mudança na coloração no período reprodutivo. Somente o Leptuca leptodactyla e o Leptuca uruguayensis
exibem um alvejamento tão extenso. Nestas imagens também pode ser visto
o aspecto típico dos dedos da quela maior do macho, com dedos longo e
delicados. Na foto da direita, pode ser visto também o mero longo e
fino. Fotos de Carlos Moura (esquerda) e Jorge Delamare (direita).
Leptuca uruguayensis macho,
mostrando sua típica coloração reprodutiva, alvejamento parcial e
membros de intenso vermelho. Foto de Walther Ishikawa.
Falta
diferenciar o Leptuca uruguayensis do Leptuca leptodactyla. Nem sempre esta distinção é fácil, mas a última chave publicada (Dra. Masunari) oferece uma alternativa interessante, que é a análise da face superior da mão da quela do macho. L. uruguayensis possui uma fenda alongada acompanhando sua margem, geralmente preenchida por detritos. L. leptodactyla tem esta superfície lisa.
Comparação da face dorsal da mão da quela maior dos machos de Leptuca lepodactyla e Leptuca uruguayensis. Maiores detalhes no texto acima. Fotos de Jorge Delamare e Walther Ishikawa.
O L. leptodactyla é a menor
espécie de chama-maré brasileiro (carapaça
com largura de até 1,0 cm). O macho possui dedos bastante longos e delgados na
garra maior, daí seu nome, e seu mero também é alongado. Os dedos são mais longos do que L. uruguayensis (1,6x a mão, contra 1,3x a mão).
Em machos em coloração reprodutiva, se o alvejamento for total na carapaça, trata-se do L. leptodactyla. Porém, se o alvejamento por parcial, não há como distinguir as duas espécies.
Outra informação que ajuda bastante é o local de coleta. O L. leptodactyla
constrói tocas em ambientes bastante salinos, mais próximo ao mar, em
terrenos arenosos muitas vezes junto ao limite superior da maré. Ou
seja, quase na "praia". A distribuição geográfica das duas espécies também é distinta, o L. uruguayensis não é encontrado em estados mais ao norte (maiores informações na primeira
parte do artigo).
Outro
achado que, se presente, pode ajudar, é o aspecto da toca. O L. leptodactyla e o L. cumulanta são as duas únicas espécies brasileiras que constroem
um ornamento em forma de “capuz” na entrada da toca. É uma parede curva, com
formato de uma concha, que o caranguejo ergue num dos lados da entrada da toca.
Nem sempre está presente, mas quando observado, ajuda bastante na identificação
da espécie.
Macho de Leptuca leptodactyla, fotografado em Extremoz, RN. Note a orrnamentação em forma de capuz na entrada da sua toca. Foto gentilmente cedida por Diogo Silva.
Macho de Leptuca leptodactyla, fotografado em Manguinhos, Serra, ES. Note a orrnamentação em forma de capuz na entrada da sua toca. Foto gentilmente cedida por Flávio Mendes.
Veja a segunda parte do artigo aqui