Rheodreissena
Dreissenidae é uma
das famílias de moluscos continentais e estuarinos mais importantes sob o
aspecto econômico e ecológico. Eram conhecidas cerca de catorze espécies extantes
em três gêneros, Congeria, Mytilopsis e Dreissena, esta
última bastante conhecida pelas espécies D. polymorpha e D.
rostriformis, os Mexilhões Zebra e Quagga, espécies russas que são
encontradas como invasoras nos EUA, com impactos comparáveis ao Mexilhão-dourado.
Duas espécies estuarinas de Mytilopsis (M. leucophaeata e M.
sallei) também são importantes invasores em vários países, a primeira já
foi detectada em áreas costais do Brasil (PE e RJ).
Três espécies neotropicais
de Dreissenidae eram conhecidas, uma Congeria do Rio Orinoco
(Venezuela), e duas Mytilopsis, uma estuarina do Noroeste sul-americano,
a outra brasileira do Rio Tocantins. Em 2018, baseado em estudos moleculares (mitocondriais
COI e 16S, além de nucleares 18S e 28S) e filogenéticos, as duas espécies de
água doce sul-americanas foram agrupadas num novo gênero, Rheodreissena.
Este mesmo trabalho identificou duas novas espécies no Rio Xingu, que foram
formalmente descritas em 2019.
Etimologia: Rheo tem origem grega (ῥέω, rhéō) e
significa rio, correnteza, uma menção ao tipo de habitat onde são encontrados
estes moluscos. Dreissena é o nome do gênero bivalve previamente
existente, é uma homenagem a M. Driessens, um farmacêutico alemão de Mazeyk, de
quem Van Beneden recebeu o lote de moluscos que permitiu a descrição do gênero.
As espécies conhecidas de Rheodreissena
Geda et al. 2018 são:
- Rheodreissena
hoeblichi (Schütt 1991a) – bacia do Orinoco, Venezuela, Colômbia e Guiana
- Rheodreissena
lopesi (Alvarenga & Ricci, 1989) – bacias do Tocantins e Xingu, PA e TO,
Brasil
- Rheodreissena
cordilineata Mansur, Pereira, Pimpão & Sabaj, 2019 – bacias do
Madeira, Trombetas e Xingu, PA e RO, Brasil
- Rheodreissena
xinguana Mansur, Pereira, Pimpão & Sabaj, 2019 – bacias do Tapajós e
Xingu, PA, Brasil
Parece
haver uma quinta espécie do Orinoco, os espécimes coletados no Rio Ventuari
parecem ser de uma espécie distinta do R. hoeblichi.
Morfologia
São
moluscos bivalves de pequenas dimensões, sésseis, que vivem fixos a substratos
rochosos através de um bisso, formando grandes aglomerados. Forma alongada e
mitiliforme (forma de mexilhão) em visão lateral, cordiforme (forma de coração)
em visão dorsal, bico/umbo localizado bem anteriormente, mais agudo do que
outros gêneros da família. Geralmente as conchas são assimétricas,
inequivalves. Superfície ventral achatada e dorsal inflada. Superfície interna
da concha sem marcações dos adutores ou dentes, nacarada clara ou azulada.
Alguns
detalhes que auxiliam na sua diferenciação do Mexilhão-dourado invasor são os
umbos terminais (subterminais no Limnoperna),
septo e apófise na superfície interna da concha (charneira simples no Limnoperna).
Entre
as diferentes espécies, há variação nas dimensões e forma das conchas, assim
como na sua cor e aspecto:
R.
hoeblichi é a maior espécie, mede até 19 mm. Tem a superfície externa da
concha com aspecto malhado, com faixas de cor marrom e preto: Concha de Rheodreissena hoeblichi, coletado entre os rios Ventuari e Orinoco, estado do Amazonas, Venezuela. Imagem extraída de Geda SR et al. Mol. Phylogenet. Evol. 2018. Fotos de Nathan K. Lujan.
R.
lopesi mede até 13 mm, tem o periostraco bastante expandido e lameloso,
redundante e com muitas dobras. Superfície externa fosca, cor variando entre creme
a marrom escuro, frequentemente com um par bilateral de faixas radiais claras.
Pode haver uma mancha escura elíptica na região dorsal apical: Conchas de Rheodreissena lopesi, coletadas no baixo Rio Xingú, PA. Imagem extraída de Mansur MCD et al. Proc. Acad. Nat. Sci. Philadelphia. 2019. Fotos de Mark Henry Sabaj Perez.
R.
cordilineata mede até 6 mm, tem a superfície externa da concha esculturada
por ondulações sinuosas paralelas oblíquas à linha dorsal. Periostraco
discretamente lamelado, liso, fosco a discretamente brilhante, com grande
variação na coloração, geralmente com um padrão contrastante de faixas curtas e
regulares, brancas e marrons ou pretas em vários tons. As faixas eventualmente
formam um desenho ao longo da carina. Muitos adultos têm um desenho escuro em
forma de olho, na região dorsal da concha. Seu nome específico vem do formato
da concha e dos padrões:
Conchas de Rheodreissena cordilineata, coletadas no baixo Rio Xingú, PA. Imagem extraída de Mansur MCD et al. Proc. Acad. Nat. Sci. Philadelphia. 2019. Fotos de Mark Henry Sabaj Perez.
R.
xinguana mede até 13 mm. Sua concha é mais achatada e menos globosa do
que as outras espécies, em forma de leque. Periostraco fino e liso. Superfície
externa da concha com ondulações comarginais regulares e justapostas, lisa,
coloração clara (especialmente juvenis) a marrom escuro ou cinza, uniforme ou
bicolor (claro anteriormente e tornando-se gradualmente escura em direção às
margens dorsal e posterior): Conchas de Rheodreissena xinguana, coletadas no baixo Rio Xingú, PA. Imagem extraída de Mansur MCD et al. Proc. Acad. Nat. Sci. Philadelphia. 2019. Fotos de Mark Henry Sabaj Perez.
As
partes moles têm cor acastanhada. Há extensa fusão das margens do manto, as
aberturas restritas aos dois sifões, e pequeno forame ventral para a saída das
fibras do bisso. O sifão inalante é distensível, adquirindo uma forma de
guarda-chuva invertida, com margens lisas. No seu interior, longe da margem, há
uma faixa de tentáculos.
Rheodreissena hoeblichi, animais vivos aderidos a uma rocha, em meio a esponjas. Fotografados entre os rios Ventuari e Orinoco, estado do Amazonas, Venezuela. Fotos de Nathan K. Lujan. A imagem que abre o artigo também é da mesma localidade.
Habitat
e distribuição
Sua
distribuição é restrita aos canais principais de grandes rios continentais de
correnteza rápida e águas claras e límpidas (modo de vida reofílico), de
substrato rochoso granítico, drenando altiplanos dos escudos Brasileiro e das
Guianas, norte da América do Sul. Formam agregados de 10 a 40 indivíduos, mais
frequente na face inferior de rochas, geralmente alinhados onde estas rochas
encontram o substrato.
Muito
frequentemente são encontrados em associação com esponjas de água doce, com
esponjas crescendo sobre suas conchas, muitas vezes recobrindo praticamente todo
o molusco. Exemplares de Rheodreissena
foram encontrados até vivendo no interior dos esqueletos reticulados dessas esponjas.
Nestes habitats, associações do tipo também são frequentes com outros bivalves
que vivem enterrados no substrato, e gastrópodes como Doryssa. Trata-se de um fato curioso, já que há registros de Dreissena e Limnoperna invasores sendo sufocados por um crescimento de esponjas
sobre suas conchas. Talvez, por serem espécies nativas, sejam já bem adaptadas
a esta coexistência, podendo representar até algum tipo de “mutualismo de filtradores”
como ocorre com espécies marinhas.
- R.
hoeblichi ocorre no Rio Caroní, um tributário do baixo Orinoco no Estado
Bolivar, leste da Venezuela, e Rio Ventuari, um tributário do alto Orinoco no
Estado de Amazonas, sul da Venezuela, drenando o escudo das Guianas. Provavelmente
é encontrado também nos Rios Cuchivero, Ocamo e Padamo, que possuem habitats
similares. Há registros de coletas também na Colômbia e Guiana. São encontrados
na face inferior de rochas, em agregados de dezenas a centenas de indivíduos,
em meio a esponjas de água doce. Habitavam locais rasos durante a temporada de
seca, mas que possuíam alta correnteza na estação chuvosa. Neste local, a
temperatura média era de 31,1 °C, pH 5.9, condutividade específica de 12.1
µS/cm, e saturação de oxigênio dissolvido de 78,2% (5,8 mg/L).
- R.
xinguana ocorre nas bacias dos Rios Tapajós e Xingu, próximos à sua
saída do escudo brasileiro, somente no estado do PA, Brasil. São mais abundantes
nos rios do baixo Volta Grande. Mais comuns aderidos a grandes rochas submersas
em maiores profundidades, entre 15 e 30 metros, na região central dos rios, mas
também encontrados em locais mais rasos, onde são simpátricos com R.
cordilineata. Frequentemente estão associados a esponjas de água doce.
- R.
cordilineata ocorre nas três bacias tributárias do baixo Amazonas, dos
Rios Madeira (Rio Jamari), Trombetas e Xingu (incluindo seu tributário, Rio
Iriri), nos estados do PA e RO, Brasil. São abundantes em locais rasos de até
um metro de profundidade, com lenta correnteza, principalmente em pequenas
pedras perto da margem, também frequentemente associadas a esponjas. Podem ser
encontradas crescendo sobre conchas de R. xinguana.
- R.
lopesi ocorre no Rio Tocantins e seu maior tributário, Rio Araguaia, assim
como no médio Xingu, nos estados do PA e TO, Brasil. Tipicamente ocorre em
aglomerados aderidos a rochas e afloramentos em locais rasos e com pouca
correnteza. São coletados também a maiores profundidades, acima de 12 metros. O
artigo original de descrição da espécie menciona algumas características
físico-químicas do local, temperatura de 31 °C, pH 7.5 e condutividade
específica de 53 µS/cm.
Vale
menção de que os locais onde são encontrados nas corredeiras de Volta Grande
são impactados pela construção da Estação Hidrelétrica de Belo Monte, com
inundação de áreas a montantes e redução do fluxo de água a jusante, com
grandes consequências na fauna nativa.
Rheodreissena sp.,
animais vivos aderidos a uma rocha, em meio a esponjas. A ponta de uma caneta está na foto, para referência de tamanho. Fotografado
no Rio Xingú, PA. Foto de Nathan K. Lujan.
Ciclo
de vida e reprodução
Importante
papel ecológico, assim como outros dreissenídeos. Faz parte da dieta de
diversos peixes, como os das famílias Anostomidae, Doradidae e Loricariidae.
Por exemplo, faz parte da dieta regular do Cascudo Zebra (Hypancistrus zebra).
São
moluscos ovovivíparos com cuidado parental, onde as larvas são armazenadas na
cavidade palial até se tornarem dissoconchas juvenis. Baseado na localização
das larvas incubadas, a fertilização é interna, a fase de larva trocofore é
provavelmente intracapsular, e a incubação é bifásica, iniciando-se nas
demibrânquias internas (ctenídea) e terminando na cavidade do manto (palial).
Na cavidade palial, a larva se desenvolve até a fase de dissoconcha até ser
liberada na forma de larvas ou juvenis rastejantes bentônicos, já com grandes
dimensões (>800 µm). Este padrão reprodutivo foi observado nas três espécies
amazônicas. A reprodução do R. hoeblichi permanece indeterminada.
Sua
longevidade é desconhecida. Sabe-se que há grande variação dentro de
Dreissenidae, Congeria kusceri (uma espécie de cavernas) é extremamente
longeva, vivendo mais de 53 anos, enquanto as espécies mais comuns de Dreissena
e Mytilopsis vivem entre 2 e 5 anos.
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pp. 75-94. In: Mansur MCD. et al. (Org.). Moluscos límnicos invasores no
Brasil: biologia, prevenção e controle. Porto Alegre/ RS: Redes Editora, 412 p.
Somos muito gratos aos zoólogos Dr. Nathan K. Lujan (American Museum of Natural History) e Dr. Mark Henry Sabaj Perez (Universidade Drexel, EUA), por permitir o uso do material fotográfico, e valiosas informações.
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